Home Office: o cotidiano de educadores da rede pública em tempos de pandemia

Multiciência 08 junho 2021

- Não adianta estabelecer horários porque fico envolvida a todo momento tentando enviar respostas e áudios explicando as atividades. Acabamos dando aula para as crianças e para os pais. Somos ponte entre todo o sistema escolar.

É o que diz Maria Solidade, 54 anos, quando questionada sobre a rotina como professora do Ensino Fundamental I da rede pública após o advento da pandemia de Covid-19.

Sentada numa cadeira com os cotovelos apoiados na mesa de madeira, entre resmas e resmas de papéis e tarefas, pede licença um instante para olhar o pequeno aparelho celular que insistentemente vibra em suas mãos: 

- Mil perdões, preciso ver. É um estudante!

Maria Solidade, professora

O itinerário habitual de ida e vinda da escola das sete às onze e meia da manhã havia sido interrompido no início de dois mil e vinte. Na ocasião, a educadora cruzava os frenéticos corredores branco-acinzentados do Grupo Escolar América Sento-Sé Valverde. O ruído incessante dos sapatos em contato com o piso refletia os pensamentos inquietantes da professora. Indagava-se como comunicaria a suspensão temporária das aulas presenciais aos pequenos estudantes:

- Foi uma situação bastante delicada porque eu tinha consciência que as aulas online estavam por vir, mas a todo instante ficava receosa pelo aprendizado daquelas crianças e pela minha falta de domínio com as tecnologias.

A conjuntura relatada por Solidade compõe a realidade de outras 7,9 milhões de pessoas que trabalham remotamente. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD-COVID-19, realizada no Brasil em agosto//2020, o nível de instrução com a maior proporção em trabalho remoto era formado por profissionais com Ensino Superior completo ou Pós graduação.

A imersão no chamado ‘Home Office’, ou trabalho de casa, foi, em grande parte, a opção adotada por esses milhões de indivíduos como alternativa à crise sanitária da covid-19. De um dia para outro começaram a abrir o laptop na mesa da sala de jantar enquanto as crianças invadiam suas teleconferências. Em tempo recorde, tiveram de procurar computadores, celulares ou utilizar seus próprios instrumentos digitais para se adaptarem a plataformas seguras e organizarem virtualmente suas tarefas. Passados quase 2 anos, com os surtos de casos se multiplicando e a vacinação em estágio de lentidão, a recomendação de priorizar o teletrabalho permanece.

- Em casa estou dividida entre os afazeres domésticos e a orientação e correção das atividades dos meus alunos. São semanas muito atarefadas porque fico muito tempo conectada, às vezes quando estou muito estressada ouço música, diz Solidade.

Ainda com as mãos no celular, a professora corre os olhos na tela do aparelho para conferir atividades e mensagens que chegam ininterruptamente. Desde março de 2020, utiliza o WhatsApp como ferramenta laboral. Casa e trabalho se fundiram numa irrefreada simbiose. Os quartos de dormir da moradia se transformaram em salas de aula com pilhas de papéis ofícios pendurados nas paredes em substituição aos costumeiros quadros.

A audiência infantil cede espaço para os inúmeros contatos de pais na agenda telefônica, vídeos confusos, áudios e mais áudios que ocupam os arquivos de memória do aparelho celular. Nas poucas reuniões virtuais realizadas, o tempo em que se tem a oportunidade de olhar mutuamente nos olhos das crianças é escasso. Quase sempre, estão com as câmeras fechadas e áudios desativados.

- Falo com o silêncio e escuto silêncios, diz Solidade com um sorriso tenso.

À solidão da docente, soma-se outros sentimentos de ansiedade e tristeza pelo que ainda está por vir. As jornadas duplas ou até triplas de trabalho, em conjunto às atividades domésticas, parecem a sobrecarregar fisicamente e mentalmente.

- Trabalhamos com ônus e, no entanto, não consigo acompanhar o processo de aprendizagem das crianças. Recebo um diário para preencher e dar as notas, porém, sinto-me incapacitada em atribuí-las, conta a professora.

Em um momento fugaz a educadora põe o celular na mesa e fixa o olhar no horizonte. Milhares de neurônios parecem se comunicar por sinapses elétricas e químicas com o intuito de refletir sobre a sua atual situação. O devaneio é breve. O sorriso esboçado no rosto da professora logo após aparenta idealizar expectativa de dias melhores.

- Tenho vivido dias ruins, dias bons. Todos eles de muitos aprendizados. Quero aprender ainda.

O telefone vibra novamente. Solidade põe os óculos no rosto e pega mais uma vez o celular

- Quero aprender mais sobre essas novas tecnologias, diz ela.

Os desafios de orientar jovens em casa

É tudo novo! O trabalho de educar, ensinar e entender os discentes ganhou uma nova roupagem. É preciso se reinventar, criar algo que chame atenção, quase como um espetáculo em um pequeno quadrado de salas virtuais. 

- Essa pandemia da Covid-19 fez com que nós professores do país e de muitas outras partes do mundo, trocássemos os quadros, as carteiras escolares pelas telas e pelos aplicativos digitais. 

É o que conta a Vice-Diretora Luzenaide Cunha. A gestora assumiu o cargo há quase quatro meses em uma Escola Pública de Ensino Médio de Juazeiro-BA, e sente o peso da adaptação da modalidade presencial à remota. Agora mais que nunca é preciso estar presente, não se pode perder um aluno. O monitoramento que antes era feito nas incansáveis caminhadas pelos corredores do colégio se transformou em observações dos status de presença ou ausência dos estudantes/usuários.

- Nós da direção, não paramos. A gente tá no presencial, no online, no offline, em casa, diz Luzenaide.

Ela optou por continuar as idas ao colégio, pois sente que lá trabalha melhor do que em casa. Mesmo com essa decisão, o final do expediente é apenas um intervalo para recuperar o ânimo. A parede com grades cinza, a mão apoiada no queixo e os olhos cansados reforçam a fala da Vice- Diretora.

- Não temos mais um horário. Meu telefone se tornou público. Funciona tanto para atendimento de pais, como de alunos. Eles passam recado às 23h30 da noite e até no final de semana. 

É nessa mescla entre vida privada e vida profissional que ela e seus demais colegas de trabalho encontram alternativas para conter uma evasão escolar durante o período pandêmico. Segundo a educadora, todos os dias os professores fazem uma busca ativa e melhoram seus métodos de ensino, contudo, nem sempre conseguem conter o número de faltas.

- O professor se articula todos os dias procurando novidades com o intuito de observar se numa turma de 30 pelo menos 15 estão assistindo, afirma Luzenaide

Nesse momento a gestora se mostra feliz em poder ver nossos rostos na tela, o que segundo ela nem sempre é possível com os alunos em salas de aula virtuais:

- Estão sempre como “fantasminhas”, diz Luzenaide entre risos.

Essa não é a única dificuldade enfrentada no ensino remoto. A gestora aponta que a educação terá sequelas por um ou dois anos. Os professores têm sentido de perto essa situação. Além de terem a liberdade podada pelas medidas de restrições sociais, o trabalho para eles triplicou. Estão emocionalmente e fisicamente cansados, nas palavras da vice-diretora. 

- A gente jamais imaginava estar precisando tanto da tecnologia. Antigamente, tirávamos o celular das crianças e adolescentes pelo vício. Acredito que a função do celular não era assistir aula, diz a gestora em tom reflexivo. 

Durante uma breve pausa no final da teleconferência, encosta-se na cadeira e descansa as costas. Parece refletir sobre os futuros desafios envoltos na construção de um diálogo mais consciente, com a informação, sobretudo no ambiente digital. 

Os desafios de ensinar jovens e adultos em casa

Era um final de tarde ensolarado de quinta-feira, 27 de maio, quando Iury atendeu a chamada de vídeo. Pediu desculpas antecipadas pelos barulhos externos e disse que sua rotina estava um alvoroço.

O professor de ensino superior do Curso de Jornalismo em Multimeios da UNEB viu suas práticas cotidianas de sala de aula tomarem outros rumos em 2020. No final daquele ano, a universidade juntamente ao Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão (Consepe), aprovaria diretrizes para elaboração do plano extraordinário de componentes curriculares e demais atividades de ensino de graduação.

Iury, docente da UNEB

- Num primeiro momento eu tentava entender como tudo seria, porque em um período de aula levo em conta a participação dos alunos, as atividades e quais ferramentas devo utilizar para deixar esse tempo mais dialógico. Então, tive de refazer todos os planejamentos para me adaptar a essa nova situação, diz Iury.

A dedicação semanal ao ofício da docência é compartilhada com outras tarefas igualmente importantes: a incumbência de ser pai e também parceiro das atividades domésticas da família. Em sua antiga rotina, Iury se organizava com antecedência e sabia que pelas próximas quatro horas no período vespertino estaria em seu espaço laboral com colegas de trabalho e estudantes.

Nos dias de hoje, múltiplos quadrados pretos emergem na tela do seu computador quando abre a plataforma de ensino para ministrar aulas. Os compartimentos da casa e aparelhos digitais conectados substituíram o seu já conhecido pavilhão de salas de aula com extensas lousas brancas emolduradas de azul.

- Eu ia para a sala de aula e sabia que ali era meu ambiente de trabalho.  Agora a situação é um tanto estranha. Muitas vezes eu estou dando aula e a tela é preta. Eu passo duas horas olhando para tela preta. Antes podíamos ver o rosto, a expressão, a dúvida pontual de cada um. Hoje, eu praticamente não tenho interação com os alunos, relata Iury

O pouco diálogo e estranhamento com a atual conjuntura são reclamações frequentes dos profissionais quando se trata do Home Office. De acordo com uma pesquisa do Centro de Inovação da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (FGV-EAESP), realizado em 2020, 56% entre 464 entrevistados encontraram muita dificuldade ou dificuldade moderada em equilibrar as atividades profissionais e pessoais no home office. O levantamento constatou ainda que para 45,8% houve aumento da carga de trabalho após o isolamento. 34% dos entrevistados consideraram difícil ou muito difícil manter a motivação, e 36% opinaram difícil ou muito difícil continuar com a mesma produtividade.

No semestre de 2021.1 Iury ministra aula para três turmas na universidade. São disciplinas diferentes para classes de perfis diversos compostas por jovens e adultos. Além da jornada de ensino, o docente tenta administrar a aula juntamente aos cuidados com o filho pequeno:

- Já tive que cancelar aula porque meu filho queria ficar onde eu estava. E mesmo que eu falasse bem baixinho para ele não escutar, ele sabia onde me achar. Abria a porta e começava a cantarolar e querer brincar com o computador. Hoje, a minha preocupação e pensamento era ‘Meu Deus, como é que eu vou dar orientação, organizar, ler o material desse jeito aqui?’

Enquanto o docente discorria sobre o dia-a-dia empenhado em conciliar vida de trabalho e vida pessoal, o pequeno progênito fazia peripécias durante a teleconferência. Sentava ao lado do pai e tentava identificar quem estava do outro lado da chamada telefônica. Saia de cena por alguns instantes e começava a entoar canções indistinguíveis. Entre uma brincadeira e outra, voltava a aparecer na chamada dando breves “tchauzinhos”.

Com as aulas interrompidas e a ausência da escola como primeiro espaço de socialização, pais e crianças dividem os mesmos espaços de aprendizagem.

- Tem dias que eu fico deitado e pensando, tomara que eu consiga ficar deitado mais um pouquinho. Mas aí chega mensagem no WhatsApp, e-mails, uma coisa ou outra para resolver e as tarefas adicionais dentro de casa para lidar.

?Ofício do professor mudou: como planejar as atividades e manter o bem-estar

As realidades contadas pelos profissionais da educação da rede pública, tais quais Solidade, Iury e Luzenaide parecem se repetir como uma constante matemática de valor fixo. O ensino remoto era isto? Não, diz a pesquisadora e docente dos cursos de Pedagogia e Comunicação da UNEB, Edilane Teles. A situação é excepcional, porém o Home Office agora é uma realidade tangível sem horas para dar adeus.

O ofício dos professores e educadores foi um dos que mais sofreu mudanças. Tendo como instrumentos essenciais de seu trabalho o próprio corpo e a própria voz, eles agora têm como ferramentas imprescindíveis os celulares, computadores e redes sociais. Em meio à adaptação a essa nova forma de trabalho, eles enfrentam maiores responsabilidades e cobranças em suas tarefas.

- O trabalho remoto requer planejamento diverso que exige formação do professor. Nem todos os docentes estão tendo oportunidade de formação, principalmente com as novas mídias e tecnologias, diz Edilane

Edilane Teles, docente da UNEB

Recentemente, a educadora publicou a pesquisa ‘O ensino remoto e os impactos nas aprendizagens’ em que aborda, a partir da escuta ativa, as experiências de pais, discentes e docentes, com a educação formal, durante o período de distanciamento social.

Segundo ela, a falta de preparação e de equipamentos, além das jornadas intermináveis de afazeres estão entre as reclamações mais frequentes dos profissionais da educação. Os horários indefinidos para começar e finalizar as atividades, bem como os ininterruptos e-mails que a cada minuto aparecem na caixa de entrada dos professores também são situações comuns de serem observadas nesse período.

- Precisamos equalizar o nosso momento de casa e o nosso momento de trabalho para termos uma boa qualidade de vida, diz Edilane.

São uma entre inúmeras dicas propostas aos profissionais docentes. A preocupação com a saúde psíquica e emocional com a sobrecarga de trabalho também é outra recomendação.

Sugestões e lições dadas de um tempo adverso. A pandemia ampliou os trabalhos a distância e passou a evidenciar um cenário social em que as pessoas estão fisicamente dispersas e tecnologicamente conectadas. Contudo, Edilane ressalta a capacidade inventiva dos professores ao se adaptarem a novas modalidades de ensino e aprendizagem.

- Eles estão de fato de parabéns pela capacidade de reinvenção e transformação.

Para acessar a pesquisa de Edilane Teles, use o link.

Reportagem especial de Ruana Mirele e Madeleine Mourão, estudantes de Jornalismo em Multimeios DCH III - UNEB, para Agência MultiCiência, e disponível na plataforma Wix. Recomendamos uma visita.