- Não
adianta estabelecer horários porque fico envolvida a todo momento tentando
enviar respostas e áudios explicando as atividades. Acabamos dando aula para as
crianças e para os pais. Somos ponte entre todo o sistema escolar.
É
o que diz Maria Solidade, 54 anos, quando questionada sobre a rotina como
professora do Ensino Fundamental I da rede pública após o advento da pandemia
de Covid-19.
Sentada numa
cadeira com os cotovelos apoiados na mesa de madeira, entre resmas e resmas de
papéis e tarefas, pede licença um instante para olhar o pequeno aparelho
celular que insistentemente vibra em suas mãos:
- Mil
perdões, preciso ver. É um estudante!
O itinerário habitual de ida e vinda da escola das sete às onze e meia da manhã havia sido interrompido no início de dois mil e vinte. Na ocasião, a educadora cruzava os frenéticos corredores branco-acinzentados do Grupo Escolar América Sento-Sé Valverde. O ruído incessante dos sapatos em contato com o piso refletia os pensamentos inquietantes da professora. Indagava-se como comunicaria a suspensão temporária das aulas presenciais aos pequenos estudantes:
- Foi uma
situação bastante delicada porque eu tinha consciência que as aulas online
estavam por vir, mas a todo instante ficava receosa pelo aprendizado daquelas
crianças e pela minha falta de domínio com as tecnologias.
A
conjuntura relatada por Solidade compõe a realidade de outras 7,9 milhões de
pessoas que trabalham remotamente. Segundo dados da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios – PNAD-COVID-19, realizada no Brasil em agosto//2020, o
nível de instrução com a maior proporção em trabalho remoto era formado por
profissionais com Ensino Superior completo ou Pós graduação.
A imersão no
chamado ‘Home Office’, ou trabalho de casa, foi, em grande parte, a opção
adotada por esses milhões de indivíduos como alternativa à crise sanitária da
covid-19. De um dia para outro começaram a abrir o laptop na mesa da sala de
jantar enquanto as crianças invadiam suas teleconferências. Em tempo recorde,
tiveram de procurar computadores, celulares ou utilizar seus próprios
instrumentos digitais para se adaptarem a plataformas seguras e organizarem
virtualmente suas tarefas. Passados quase 2 anos, com os surtos de casos se
multiplicando e a vacinação em estágio de lentidão, a recomendação de priorizar
o teletrabalho permanece.
- Em casa
estou dividida entre os afazeres domésticos e a orientação e correção das
atividades dos meus alunos. São semanas muito atarefadas porque fico muito
tempo conectada, às vezes quando estou muito estressada ouço música, diz
Solidade.
Ainda com as
mãos no celular, a professora corre os olhos na tela do aparelho para conferir
atividades e mensagens que chegam ininterruptamente. Desde março de 2020,
utiliza o WhatsApp como ferramenta laboral. Casa e trabalho se fundiram numa
irrefreada simbiose. Os quartos de dormir da moradia se transformaram em salas
de aula com pilhas de papéis ofícios pendurados nas paredes em substituição aos
costumeiros quadros.
A audiência
infantil cede espaço para os inúmeros contatos de pais na agenda telefônica,
vídeos confusos, áudios e mais áudios que ocupam os arquivos de memória do
aparelho celular. Nas poucas reuniões virtuais realizadas, o tempo em que se
tem a oportunidade de olhar mutuamente nos olhos das crianças é escasso. Quase
sempre, estão com as câmeras fechadas e áudios desativados.
- Falo com o
silêncio e escuto silêncios, diz Solidade com um sorriso tenso.
À solidão da
docente, soma-se outros sentimentos de ansiedade e tristeza pelo que ainda está
por vir. As jornadas duplas ou até triplas de trabalho, em conjunto às
atividades domésticas, parecem a sobrecarregar fisicamente e mentalmente.
-
Trabalhamos com ônus e, no entanto, não consigo acompanhar o processo de
aprendizagem das crianças. Recebo um diário para preencher e dar as notas,
porém, sinto-me incapacitada em atribuí-las, conta a professora.
Em um
momento fugaz a educadora põe o celular na mesa e fixa o olhar no horizonte.
Milhares de neurônios parecem se comunicar por sinapses elétricas e químicas
com o intuito de refletir sobre a sua atual situação. O devaneio é breve. O
sorriso esboçado no rosto da professora logo após aparenta idealizar
expectativa de dias melhores.
- Tenho
vivido dias ruins, dias bons. Todos eles de muitos aprendizados. Quero aprender
ainda.
O telefone
vibra novamente. Solidade põe os óculos no rosto e pega mais uma vez o celular
- Quero
aprender mais sobre essas novas tecnologias, diz ela.
É tudo novo! O trabalho de educar, ensinar e entender os discentes ganhou uma nova roupagem. É preciso se reinventar, criar algo que chame atenção, quase como um espetáculo em um pequeno quadrado de salas virtuais.
- Essa
pandemia da Covid-19 fez com que nós professores do país e de muitas outras
partes do mundo, trocássemos os quadros, as carteiras escolares pelas telas e
pelos aplicativos digitais.
É o que
conta a Vice-Diretora Luzenaide Cunha. A gestora assumiu o cargo há quase
quatro meses em uma Escola Pública de Ensino Médio de Juazeiro-BA, e sente o
peso da adaptação da modalidade presencial à remota. Agora mais que nunca é
preciso estar presente, não se pode perder um aluno. O monitoramento que antes
era feito nas incansáveis caminhadas pelos corredores do colégio se transformou
em observações dos status de presença ou ausência dos estudantes/usuários.
- Nós da
direção, não paramos. A gente tá no presencial, no online, no offline, em casa,
diz Luzenaide.
Ela optou
por continuar as idas ao colégio, pois sente que lá trabalha melhor do que em
casa. Mesmo com essa decisão, o final do expediente é apenas um intervalo para
recuperar o ânimo. A parede com grades cinza, a mão apoiada no queixo e os
olhos cansados reforçam a fala da Vice- Diretora.
- Não temos
mais um horário. Meu telefone se tornou público. Funciona tanto para
atendimento de pais, como de alunos. Eles passam recado às 23h30 da noite e até
no final de semana.
É nessa
mescla entre vida privada e vida profissional que ela e seus demais colegas de
trabalho encontram alternativas para conter uma evasão escolar durante o
período pandêmico. Segundo a educadora, todos os dias os professores fazem uma
busca ativa e melhoram seus métodos de ensino, contudo, nem sempre conseguem
conter o número de faltas.
- O
professor se articula todos os dias procurando novidades com o intuito de
observar se numa turma de 30 pelo menos 15 estão assistindo, afirma Luzenaide
Nesse momento
a gestora se mostra feliz em poder ver nossos rostos na tela, o que segundo ela
nem sempre é possível com os alunos em salas de aula virtuais:
- Estão
sempre como “fantasminhas”, diz Luzenaide entre risos.
Essa não é a
única dificuldade enfrentada no ensino remoto. A gestora aponta que a educação
terá sequelas por um ou dois anos. Os professores têm sentido de perto essa
situação. Além de terem a liberdade podada pelas medidas de restrições sociais,
o trabalho para eles triplicou. Estão emocionalmente e fisicamente cansados,
nas palavras da vice-diretora.
- A gente
jamais imaginava estar precisando tanto da tecnologia. Antigamente, tirávamos o
celular das crianças e adolescentes pelo vício. Acredito que a função do
celular não era assistir aula, diz a gestora em tom reflexivo.
Durante uma
breve pausa no final da teleconferência, encosta-se na cadeira e descansa as
costas. Parece refletir sobre os futuros desafios envoltos na construção de um
diálogo mais consciente, com a informação, sobretudo no ambiente digital.
Os desafios de ensinar jovens e adultos em casa
Era um final
de tarde ensolarado de quinta-feira, 27 de maio, quando Iury atendeu a chamada
de vídeo. Pediu desculpas antecipadas pelos barulhos externos e disse que sua
rotina estava um alvoroço.
O professor
de ensino superior do Curso de Jornalismo em Multimeios da UNEB viu suas
práticas cotidianas de sala de aula tomarem outros rumos em 2020. No final
daquele ano, a universidade juntamente ao Conselho Superior de Ensino, Pesquisa
e Extensão (Consepe), aprovaria diretrizes para elaboração do plano
extraordinário de componentes curriculares e demais atividades de ensino de graduação.
- Num primeiro momento eu tentava entender como tudo seria, porque em um período de aula levo em conta a participação dos alunos, as atividades e quais ferramentas devo utilizar para deixar esse tempo mais dialógico. Então, tive de refazer todos os planejamentos para me adaptar a essa nova situação, diz Iury.
A dedicação
semanal ao ofício da docência é compartilhada com outras tarefas igualmente
importantes: a incumbência de ser pai e também parceiro das atividades
domésticas da família. Em sua antiga rotina, Iury se organizava com
antecedência e sabia que pelas próximas quatro horas no período vespertino
estaria em seu espaço laboral com colegas de trabalho e estudantes.
Nos dias de
hoje, múltiplos quadrados pretos emergem na tela do seu computador quando abre
a plataforma de ensino para ministrar aulas. Os compartimentos da casa e
aparelhos digitais conectados substituíram o seu já conhecido pavilhão de salas
de aula com extensas lousas brancas emolduradas de azul.
- Eu ia para
a sala de aula e sabia que ali era meu ambiente de trabalho. Agora a
situação é um tanto estranha. Muitas vezes eu estou dando aula e a tela é
preta. Eu passo duas horas olhando para tela preta. Antes podíamos ver o rosto,
a expressão, a dúvida pontual de cada um. Hoje, eu praticamente não tenho
interação com os alunos, relata Iury
O pouco
diálogo e estranhamento com a atual conjuntura são reclamações frequentes dos
profissionais quando se trata do Home Office. De acordo com uma pesquisa
do Centro de Inovação da Escola de Administração de Empresas de São Paulo
(FGV-EAESP), realizado em 2020, 56% entre 464 entrevistados encontraram muita
dificuldade ou dificuldade moderada em equilibrar as atividades profissionais e
pessoais no home office. O levantamento constatou ainda que para 45,8%
houve aumento da carga de trabalho após o isolamento. 34% dos entrevistados
consideraram difícil ou muito difícil manter a motivação, e 36% opinaram
difícil ou muito difícil continuar com a mesma produtividade.
No semestre
de 2021.1 Iury ministra aula para três turmas na universidade. São disciplinas
diferentes para classes de perfis diversos compostas por jovens e adultos. Além
da jornada de ensino, o docente tenta administrar a aula juntamente aos
cuidados com o filho pequeno:
- Já tive
que cancelar aula porque meu filho queria ficar onde eu estava. E mesmo que eu
falasse bem baixinho para ele não escutar, ele sabia onde me achar. Abria a
porta e começava a cantarolar e querer brincar com o computador. Hoje, a minha
preocupação e pensamento era ‘Meu Deus, como é que eu vou dar orientação,
organizar, ler o material desse jeito aqui?’
Enquanto o
docente discorria sobre o dia-a-dia empenhado em conciliar vida de trabalho e
vida pessoal, o pequeno progênito fazia peripécias durante a teleconferência.
Sentava ao lado do pai e tentava identificar quem estava do outro lado da
chamada telefônica. Saia de cena por alguns instantes e começava a entoar
canções indistinguíveis. Entre uma brincadeira e outra, voltava a aparecer na
chamada dando breves “tchauzinhos”.
Com as aulas
interrompidas e a ausência da escola como primeiro espaço de socialização, pais
e crianças dividem os mesmos espaços de aprendizagem.
- Tem dias
que eu fico deitado e pensando, tomara que eu consiga ficar deitado mais um
pouquinho. Mas aí chega mensagem no WhatsApp, e-mails, uma coisa ou outra para
resolver e as tarefas adicionais dentro de casa para lidar.
?Ofício do professor mudou: como planejar as atividades e manter o bem-estar
As
realidades contadas pelos profissionais da educação da rede pública, tais quais
Solidade, Iury e Luzenaide parecem se repetir como uma constante matemática de
valor fixo. O ensino remoto era isto? Não, diz a pesquisadora e docente dos
cursos de Pedagogia e Comunicação da UNEB, Edilane Teles. A situação é
excepcional, porém o Home Office agora é uma realidade tangível sem
horas para dar adeus.
O ofício dos
professores e educadores foi um dos que mais sofreu mudanças. Tendo como
instrumentos essenciais de seu trabalho o próprio corpo e a própria voz, eles
agora têm como ferramentas imprescindíveis os celulares, computadores e redes
sociais. Em meio à adaptação a essa nova forma de trabalho, eles enfrentam
maiores responsabilidades e cobranças em suas tarefas.
- O trabalho
remoto requer planejamento diverso que exige formação do professor. Nem todos
os docentes estão tendo oportunidade de formação, principalmente com as novas
mídias e tecnologias, diz Edilane
Recentemente, a educadora publicou a pesquisa ‘O ensino remoto e os impactos nas aprendizagens’ em que aborda, a partir da escuta ativa, as experiências de pais, discentes e docentes, com a educação formal, durante o período de distanciamento social.
Segundo ela,
a falta de preparação e de equipamentos, além das jornadas intermináveis de
afazeres estão entre as reclamações mais frequentes dos profissionais da
educação. Os horários indefinidos para começar e finalizar as atividades, bem
como os ininterruptos e-mails que a cada minuto aparecem na caixa de entrada
dos professores também são situações comuns de serem observadas nesse período.
- Precisamos
equalizar o nosso momento de casa e o nosso momento de trabalho para termos uma
boa qualidade de vida, diz Edilane.
São uma
entre inúmeras dicas propostas aos profissionais docentes. A preocupação com a
saúde psíquica e emocional com a sobrecarga de trabalho também é outra
recomendação.
Sugestões e
lições dadas de um tempo adverso. A pandemia ampliou os trabalhos a distância e
passou a evidenciar um cenário social em que as pessoas estão fisicamente
dispersas e tecnologicamente conectadas. Contudo, Edilane ressalta a capacidade
inventiva dos professores ao se adaptarem a novas modalidades de ensino e
aprendizagem.
- Eles estão
de fato de parabéns pela capacidade de reinvenção e transformação.
Para acessar a pesquisa de Edilane Teles, use o link.
Reportagem especial de Ruana Mirele e Madeleine Mourão, estudantes de Jornalismo em Multimeios DCH III - UNEB, para Agência MultiCiência, e disponível na plataforma Wix. Recomendamos uma visita.