A flor da rádio sertaneja

Multiciência 23 julho 2021

Margarida Benevides

O dia estava frio, como de costume nessa época do ano em Carnaíba do Sertão, e fazia um vento forte quando me encontrei com Margarida Benevides em sua casa. Tive o privilégio de ter um encontro presencial em tempos de isolamento social - apesar das duas máscaras que usei e de nossa distância física para proteger a jovem senhora - e pude perceber o quanto Margarida faz jus ao seu nome de flor: ela é uma amante da natureza, sua casa é bastante florida e cheia de plantas, abriga seus animais de estimação e acolhe quem a procura para uma boa prosa. Comunicadora, Margarida tem o dom da palavra.

Durante nosso encontro conduzido pelo canto dos pássaros e pelo som das folhas, e algumas vezes, pelo barulho dos carros e caminhões, ela fazia pausas para admirar seu gatinho e a natureza ao nosso redor. Vestida com uma calça tipo moletom, blusão e meias nos pés, para proteger-se dos 23º graus, passava as mãos pelos cabelos lisos e grisalhos e mostrava autoconfiança ao relatar sua trajetória pessoal e profissional. De como ela, formada em magistério e graduada em administração, professora de nível infantil e superior, tornou-se a radialista Margarida Benevides.

Juazeirense, ficou conhecida por apresentar o programa Quando nasce uma Esperança na Rádio Juazeiro, que além de ser um produto jornalístico, foi também a voz dos pobres de todo o vale do São Francisco por mais de três décadas. Ela acompanhou de perto todo o processo de desenvolvimento e de legalização da Rádio Juazeiro, assim como a ascensão da radiodifusão e do jornalismo empresarial na região. Além disso, foi a incentivadora da carreira de muitos jornalistas e radialistas, por isso é referência também para a nova geração da comunicação sanfranciscana.

Inicialmente, ela atuava somente na gerência da rádio e relembra que, na década de 1980, não entendia nada, pensava que era só ligar um botão e falar. Mas, ao passar do tempo, ela se identificava com a administração, também aprendia e conhecia sobre rádio.

- Nunca tinha feito locução e minha primeira tentativa em fazer algo fora da gerência foi um anúncio que dizia assim: atenção Zé Bundão, um profissional tirava aquilo de letra, mas eu caí na gargalhada.

Tudo mudou após Margarida ter tido a intuição - um chamado – para lançar o programa Quando nasce uma Esperança e ajudar as pessoas mais necessitadas. Assim fez, escreveu o programa e levou ao diretor Osvaldo Benevides que lhe deu o maior apoio. O objetivo era criar nos ouvintes o sentimento de partilha, caridade e de generosidade.

- Deu certo! Passamos por três gerações, e na primeira geração as mães, as avós colocavam suas crianças para ouvir o programa porque eles poderiam ganhar alguma coisa, brinquedos ou material escolar. Mas outros, foram crescendo, ouvindo e gostando. Nós passamos pelas crianças, pelos jovens, pelas mulheres, pelos moradores de rua, pelos alcoólicos, viciados em drogas, e em cada passagem deixamos um pouco de nossa presença. Hoje, depois de 37 anos, encontro pessoas nas ruas que falam, eu sou o que eu sou hoje, tenho meus valores morais e religiosos, porque minha avó me colocava para ouvir o programa.

Margarida foi apresentadora até meados de 2020. Hoje, com 75 anos, está aposentada e vive em um processo de autoconhecimento pessoal e solitude. Ela fala sobre a falta que o programa lhe faz, com o olhar distante e reflexivo, refere-se a esse episódio como uma perda irreparável. Dá para perceber o quanto o assunto é delicado, uma interrupção abrupta, uma sangria.

- Eu não queria parar, mas tive que parar. Para isso, precisei de uma preparação espiritual muito grande.

Serviço Público

Além da educação e da comunicação, Margarida Benevides teve participações no serviço público. Em 2019, foi diretora na Secretária de Saúde no município de Juazeiro, mas devido a um problema na visão foi submetida a uma cirurgia e pediu exoneração do cargo. Já em 2020 esteve a frente de outra secretária, da qual ela enche a boca para falar: a Secretária de Desenvolvimento, Ação Social, Diversidade e Mulher.

- Na secretária de Ação Social, eu me apaixonei. Me encantei com as crianças, teve um caso de um jovem lindo que é homossexual e o pai colocou de casa para fora, nós o acolhemos e fizemos acompanhamento psicológico com ele e com o pai. Os Crás são lindos, eles tinham atendimento e acolhimento para as crianças de rua, moradores de rua, mulheres... Conheci cada pessoa linda, artistas. Tudo que eu podia arranjar eu arranjava para eles.

Margarida fala com carinho de tantas ações que a secretaria realizou quando esteve à frente, mas que foram trabalhos mínimos, porque a pandemia ceceou quase todo o trabalho.

Apesar desse encantamento, ela também se decepcionou bastante, pois muitas pessoas que estão no serviço público não têm o desejo de justiça, não exercem o cargo por amor. Não querem ajudar as pessoas com a mesma proporção que os recursos públicos permitiriam. 

Há algum tempo, foi convidada várias vezes para ser vereadora a até mesmo prefeita da cidade de Juazeiro, contudo a política nunca fez parte dos seus sonhos. Ela diz que, na rádio, já se sentia realizada, pois a comunicação tem esse poder de fazer qualquer tipo de serviço social. Para ela, a rádio é uma Câmera de Vereadores.

Desaceleramento e cura interior

Mãe de quatro filhos, ela vive uma nova fase em sua vida: precisa desacelerar e se reconhece como idosa. “Não velha”, exclama. Margarida tem um novo projeto - fruto de outro chamado intuitivo - que lhe proporciona geração de renda e lhe auxilia no processo de cura interior. Cheia de expectativas e sorridente, fala que pretende montar uma barraca de artesanato, com objetos confeccionados por ela. Feitos de materiais recicláveis e produtos tirado da natureza como sementes e vargem. A barraca também tem o intuito de evangelizar os caminhoneiros. E conta com alegria que está sonhando com esta realização. 

Materiais utilizados por Margarida para fazer artesanato 

Com muita empolgação, mostrou-me com o artesanato e os que ainda estão em construção que ficam guardado em quarto bem espaçoso. Caminhamos mais um pouco e ela me apresentou seu escritório, uma sala com uma decoração impecável e móveis rústicos, cheia de fotografias de sua família. Cada foto, é uma história que ela conta.

Na fotografia em que ela está no meio dos pais, ela relembra o legado e se emociona a falar da herança e dos valores que cada um a deixou. São onze irmãos, nove já falecidos, todos de câncer, assim como os pais dela. Entre eles, está uma irmã que foi freira que faleceu e Osvaldo Benevides, o irmão com quem tinha uma ligação muito forte.

Ao falar de Osvaldo, que além de ser seu irmão, era o dono da Rádio Juazeiro, ela também relembra a relação afetuosa que tiveram e da saudade que sente.

- Osvaldo era um verdadeiro radiodifusor, era o cão, batalhador. Construiu uma história linda com a Rádio Juazeiro, não tinha um tostão e comprou aquela rádio. Ela chiava para a Piranga e era ouvida na Rua do Apolo. Ai um belo dia, chega a fiscalização e diz que essa rádio não existe. Basta lhe dizer que ele a legalizou e potencializou a rádio, teve dois pré-infartos e duas úlceras rompidas e não desistiu.

Fala de seu irmão com admiração e chora com as lembranças. Percebo que nosso encontro já é mais que suficiente para conhecer a flor da rádio sertaneja, que é Margarida Benevides. Despeço-me com o carinho de ouvinte que fui, e, como filha de Carnaíba do Sertão, de coração assim como ela. Ao novo projeto de Margarida, que ele traga bons frutos, como foi o Quando Nasce uma Esperança


Perfil jornalístico escrito por Taís Ciqueira para Agência Multiciência.