O sol estava prestes a dar adeus no céu
azul-alaranjado de Petrolina (PE) quando fui a casa do veterano de guerra e
ex-combatente do exército brasileiro, Aureliano Cardoso dos Santos.
Entre ruas pouco movimentadas naquele final de
domingo abafado, páginas de livros de história a respeito da Segunda Grande
Guerra pululavam a mente e se desenrolavam no que parecia ser uma sinopse de
filme que sobreavisa os espectadores acerca do que estão a instantes de experimentar.
Que histórias contaria Aureliano? O resumo que
se desenhava entre pensamentos devaneadores insistia em conjecturar relatos de um
indivíduo a quem a vida revelou suas piores facetas.
Não foram, contudo, somente experiências
negativas que ouvi do alegre senhorzinho de bermuda preta e camiseta branca,
biotipo franzino e ralos cabelos brancos, acomodado em sua cama com uma xícara
de chá erva-doce apoiado nas mãos. Aos 100 anos, completados em 16 de Junho, Aureliano relembrava, entre
risos, as noites de comemoração e os batuques cariocas na calada da noite
italiana em celebração às
vitórias obtidas pelos brasileiros contra os nazistas.
Tamanho os horrores outrora vivenciados, a existência poderia roubar-lhe o sorriso e a expressão sonhadora do rosto. Todavia, o lúcido velhinho aparentava desafiar as tristes lembranças de décadas longínquas. Revisitar um tempo adverso poderia simbolizar a força de quem foi testemunha de um acontecimento histórico que se desenrolava diante de seus olhos.
Mundo em
conflito: Os pracinhas brasileiros na Segunda Guerra
De origem humilde, Aureliano foi convocado aos
22 anos a servir as forças nacionais e integrar a equipe dos 25 mil pracinhas
brasileiros que formaram na Itália a única frente da América do Sul nos campos
de batalha da Europa durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
O termo ‘pracinha’ era utilizado pela imprensa
e população da época para se referir aos soldados rasos (militares não
graduados) que embarcaram rumo ao conflito internacional representando a Força
Expedicionária Brasileira (FEB).
O Brasil aderiu a Guerra em agosto de 1942, como
forma de retaliação aos seguidos ataques realizados pelo Eixo (Alemanha, Itália
e Japão) a navios brasileiros situados em uma área do Atlântico que vai da
costa leste norte-americana ao Cabo da Boa Esperança, no extremo sul da África.
O então
presidente Getúlio Vargas experienciava
a sua primeira era no poder (1930-1945) e havia declarado neutralidade no
conflito em 1939, ano em que chegou a flertar com o fascismo. A urgência de uma
resposta convincente, contudo, às agressões impostas pelos países do Eixo
obrigou o governo a deixar para trás o reconhecido caráter pacifista e
conciliador do Brasil. O próprio símbolo utilizado pela FEB, de uma cobra
fumando cachimbo, surgiu como uma provocação aos que diziam ser mais fácil uma
cobrar fumar do que o país entrar na guerra.
Junto a outros 370 brasileiros, Aureliano recebeu instruções de combate no 16º Batalhão do Exército Brasileiro em Natal (RN) antes de pousar nas frentes de batalhas italianas.
A gente foi para substituir um pelotão de americanos que estava há muito tempo lá. Participei de várias batalhas, umas menores e outras maiores, como a Batalha de Monte Castello e de Montese, em que saímos vitoriosos. As memórias são muitas. Lembro que ficávamos loucos para sair daquele inferno. Eram noites e noites sem dormir com medo. O cansaço nos vencia às vezes, mas noutro dia o sol queimava forte o rosto, lembrando-nos que aquilo não era um pesadelo, era a realidade nua e crua.
As narrativas recontadas por Aureliano se
confundiam com a de outros milhões e milhões de indivíduos que, nesse contexto,
lutavam por ideais fortemente autoritários e imperialistas. Noites em claro
sonorizadas pelos chiados ininterruptos dos caças e explosivos, refeições
escassas de mingau de aveia, pães e batatas, somados à convivência diária com a
morte e o luto eram itinerários comuns para uma sociedade que beirava ao caos.
- A mocidade hitlerista
era perversa. Novinhos, nem barba tinham. Entretanto, fizeram uma propaganda
horrível da gente: ‘Aí vem os macacos canibais, até carne de criança comem’.
Não digo que não fazíamos o mesmo. Os ideais estavam muito inflamados nessa
época. Infelizmente muitos jovens morreram acreditando nessas virtudes.
Em meio a breves pausas para ajustar o
aparelho de escuta, Aureliano conta que, muitas vezes, para se comunicar com a
família, os combatentes escreviam cartas e entregavam ao comandante do pelotão
para que fossem enviadas ao Brasil.
- As cartas eram bonitinhas, escrevíamos coisas do tipo: ‘Aqui é bom mainha, muita mulher bonita’. Não podíamos falar em dificuldades, pois o comandante cortava os trechos redigidos e nos dava seguidos esporros. A gente só mandava para dizer que estava vivo mesmo.
Ainda que a circunstância se mostrasse pouco
favorável às perspectivas de um futuro animador entre o grupo de pracinhas, o
desanimo não era colocado como fator preponderante dentro da equipe. O bom-humor
dos brasileiros chamava a atenção de combatentes de distintas nações, que
passavam a ver no esquadrão, esperança de dias melhores.
- Só tinha eu de paraibano e um mineiro, o
resto era carioca. A gente não deixava se abater, apesar de toda a conjuntura
se mostrar desfavorável. Pegávamos os capacetes, os fósforos, qualquer coisa
que podia se tornar um instrumento para criar um samba, uma música.
Aureliano revela que, na maior parte do tempo, as comemorações eram feitas quando se obtinham avanços nas operações brasileiras. Muitos eram os percalços para a força expedicionária. O equipamento militar brasileiro era obsoleto e a inexperiência e provincianismo da tropa elaboravam uma receita caótica para o cenário conflituoso.
Uma saga de heroísmo, sem dúvida, principalmente para as pessoas que foram libertadas das mãos nazistas nesse contexto. Fomos recebidos com entusiasmo pelos italianos, por exemplo. Até hoje somos homenageados lá.
A maior contribuição dos pracinhas na Segunda
Guerra ocorreu em Monte Castelo, batizado de “morro maldito”, em um combate que
durou três meses, até a vitória em fevereiro de 1945. Para avançar até Bolonha,
região norte da Itália, os Aliados precisavam conquistar a chamada Linha
Gótica, uma barreira das tropas alemãs. Os brasileiros tiveram de percorrer uma
rota exposta ao fogo dos inimigos. As seguidas tentativas resultaram em um
grande número de baixas para o país, que teria acumulado cerca de 450 soldados
mortos em toda a Segunda Guerra.
Ao relembrar o momento de vitória, o olhar de
Aureliano repousa em um espaço histórico remoto. O devaneio pelas lembranças
aparenta transparecer euforia, tristeza e indagações. O breve momento de fuga
da realidade termina com o pracinha me contando como foi a despedida da Itália
e a chegada ao Brasil em 15 de setembro de 1945.
Um verdadeiro carnaval. Os oficiais retiravam as fardas e reencontravam familiares, aplaudidos fervorosamente pela multidão. Soube que Vargas estava ameaçado de cair em virtude das contradições do seu governo. Fiquei um tanto feliz. Era comunista na época. O pai dos pobres não ia com a nossa cara.
Já passava das 19h da noite quando Aureliano me
contava sobre continuidade da vida após a sobrevivência ao confronto
internacional. Falou do casamento com Teresa Gomes Santos, com quem está junto
há 60 anos, dos nove filhos, 30 netos e 11 bisnetos.
Relatos de quem a vida pareceu mostrar-lhe as boas facetas novamente. A filha mais velha bate à porta do quarto oferecendo o jantar. Soube que era hora de me despedir. Cumprimentei o saudoso senhorzinho e caminhei até o portão branco que dava para a rua. O céu azul estrelado evocava lembranças de outras décadas. As avenidas ainda pouco movimentadas naquela noite de domingo eram um convite a reflexão. A mente fervilhava vislumbrando as aventuras daqueles pracinhas em solos distantes.
Reportagem Perfil de Ruana Mirele para Agência MultiCiência.