A atualidade do pensamento de Nelson Rodrigues

. 04 abril 2008


O dramaturgo, escritor e jornalista Nelson Rodrigues é objeto de controvérsia na sociedade brasileira e provoca discussões a respeito das representações que ele criou sobre a mulher, a família e a sexualidade. Para revistar o pensamento de Nelson, o professor Sebastião Almeida, da Faculdade de Ciências Sociais e Aplicadas de Petrolina (FACAPE), procura entender a evolução do universo feminino e sua relação com as forças naturais e instintivas na cultura ocidental, por meio de uma reflexão sobre a personagem Dorotéia..

Inspirado no filósofo alemão Theodor Adorno, que analisou o personagem Ulisses de Homero, herói que ficou conhecido como símbolo da capacidade humana para suplantar as adversidades, Sebastião escolheu “Dorotéia”, personagem da última fase mítica da obra do dramaturgo para analisar a fase heróica da personagem. Assim como Ulisses, Dorotéia é heroína porque realiza uma espécie de catábase, uma descida à mansão dos mortos para enfrentar seus próprios demônios.

Para quem ainda não conhece a peça Dorotéia, ela foi escrita em 1948 por Nelson Rodrigues. Na peça, tem-se uma contenda sobre um dos mais polêmicos mitos da humanidade: sexualidade e repressão dos desejos. A negação dos instintos da natureza feminina, sempre um jogo dual, a alma e o corpo, o material e o espiritual, o feminino e o masculino, a razão e a natureza, a vida e a morte, a beleza e a maldição, a rejeição do próprio corpo são os dilemas presentes na peça. Afinal, Dorotéia era moça belíssima, tornou-se prostituta e sofria a censura de suas três primas que eram muito recatadas e atormentadas por uma “herança sacrificial” advinda do “pecado” da bisavó delas: casou-se com um homem, dedicou amou a outro. Essa herança era simplesmente uma náusea presente nas relações sexuais das mulheres, que, ao invés de suscitar desejo, sente-se esse mal-estar. O texto concentra em Dorotéia a representação destes dilemas, e só ela pode vencê-los.

Sebastião defende que o mito se encontra justamente na descida da personagem até a mansão dos mortos. Para que Dorotéia seja aceita na sociedade como uma moça honrada, suas primas a convencem de que é preciso se tornar feia. Assim, o pecado seria findo. Destarte, Dorotéia procura um senhor leproso e adquire a doença. Nesse estado, ela pensa no morto que carrega consigo: a culpa por ter se distanciado da família. Fica evidente, portanto, que não existiria em Dorotéia a negação do desejo, como acontecia nas mulheres de sua família.

A partir deste enredo, o professor analisou o medo da natureza que o homem nutre em si. O professor interroga: “haveria em Dorotéia uma representação do confronto entre natureza e racionalidade na cultura ocidental?” A razão, para Sebastião, tornou-se agressiva demais, o que provocaria o súcubo dos instintos que o ser humano possui. O excesso racional vitimiza a natureza interna, e hoje com a modernidade há uma estimulação da sexualidade feminina (o que não deixa de ser problemático). A mulher tem esse domínio do desejo, de provocar. Foi Eva quem tentou Adão, mas é a mulher, também, que nasceu para ser mãe e esposa, assim como Maria, mãe de Jesus.

Ao longo deste diálogo entre Sebastião e a obra de Nelson Rodrigues, apareceram as feiticeiras que foram levadas a fogueiras no período da inquisição, não por serem bruxas velhas, horrendas e corcundas. Mas sim, mulheres belíssimas que conheciam muito de ervas e chegavam até a consolar pessoas em seus últimos suspiros.

Nesse cativante relato histórico-filosófico, o professor suscitou o mito de Pandora, a primeira mulher do mundo, segundo a mitologia grega, a libertar os males de dentro da caixa feita por Zeus em vingança a Prometeu. Percebe-se que, ao longo dos tempos, há uma produção da imagem dual da mulher. Uma dualidade problemática onde o ser feminino tem duas faces: a pura – como Nossa Senhora- digna de culto até hoje e a impura – como Eva, que recebeu o castigo de Deus. Verso e reverso duma mesma moeda.

Acredita-se que a peça passa no inconsciente de Dorotéia, e por isso é tão expressionista, tão atual e humana. A obra de Nelson Rodrigues pode nos suscitar muitos outros questionamentos, como “foi realizado um casamento perfeito entre Razão e Instintos? Em que medida a mulher é uma construção de si mesma?”. Estas perguntas trazidas pelo professor Sebastião nos conduzem a respota que a história da humanidade é uma história de procura. À mulher e ao homem, é necessário compreender os limites e encarar os próprios demônios e superá-los para se criar um indivíduo inteiro, íntegro, na essência da palavra.


Por: Jaquelyne A. Costa. Esta critica foi feita durante o Encontro Litérario no Festival de Artes do Vale do São Francisco, ocorrido entre 30 de julho a 15 agosto de 2007.