A Memória das Coisas e as Coisas de Memórias

. 06 setembro 2008
Há dois anos, vivo a garimpar pedaços de memórias nas “coisas” ( e a pensar sobre elas) com uma determinação que só encontro paralelo quando passo a refletir sobre a disposição da professora Maria Franca Pires em recolher tantos objetos de memórias.


Será mais uma imagem do “museu de tudo” que Jorge Luís Borges relata no conto “Funes, el memorioso”? O que levava Maria a tal pulsão colecionadora? Citando o ensaio “O sistema dos objetos”, de Jean Baudrillard, a pesquisadora Maria Esther Maciel afirma no livro “A memória das coisas” que todo objeto, ao ser colecionado, deixa de ser definido pela sua função para entrar na ordem da subjetividade do colecionador. Então, que subjetividade emerge deste “museu de tudo” das coisas guardadas por Maria Franca Pires?


Como dar sentido aos 90 anos de recortes da história cultural de Juazeiro – em depoimentos de personagens da história local, em jornais da primeira metade do século XX, em fotografias e cadernos de anotações – numa perspectiva de construção biográfica? “E como nomear este processo?”, perguntaria a pesquisadora Beatriz Fischer. Será uma biografia, uma narrativa biográfica ou um estudo de caso?


Em todas essas reflexões esbarrei em uma constatação que aflorou em minha consciência como um grito dos deuses: “Vá à fonte original de suas angústias, os objetos de memórias por ti inventariados no itinerário de pesquisa!” Neste aspecto, sou como Antonila da França Cardoso ao ser convocada por Maria Franca Pires para imortalizar as lendas e manifestações culturais do Vale do São Francisco: “Sou muito obediente quando me dão ordens nesse tom!”. A convocação de Antonila resultou no livro “Nosso Vale, seu folclore beira rio”. A minha resulta neste humilde relato que, por ora, inicio. Ou já iniciei?


Em um texto que escrevi sobre os penitentes, cruzei informações da pesquisa feita por Antonila com depoimentos de pessoas como D. Roza, responsável por um dos cinco atuais cordões de “Alimentadeiras de Almas”. Só depois de postar o texto na internet, encontrei um bloco de folhas grampeadas do Centro de Estudos Rurais e Urbanos de São Paulo, datado de junho de 1984, cujo título é “A penitência no presente e no passado”, de Waldenir Caldeira de Jesus Coelho de Araújo.


Parte de uma tese de doutorado em sociologia da religião pela USP, o texto de Waldenir Caldeira está na pasta que no trabalho de organização do arquivo atribuímos o número 6 e o nome “livros e livretos”. Divide espaço com “Ernesto, o artista”, drama em 3 atos de Dermeval de Ferreira Lima (o mesmo que tem um esboço biográfico na pasta 14: “biografias diversas de personagens da história local”) e, olha que surpresa!, o drama de Dermeval está lado a lado com o livro “Gente Geléia”, de Manuka (com k), hoje um veterano poeta juazeirense.


Em um mesmo bloco de folhas grampeadas está manuscrita uma palestra sobre a Revolução Francesa proferida no dia 14 de julho de 1928 por Édson Ribeiro, no Colégio Americano Geraldo Rocha de Juazeiro. Por sinal, a riqueza de materiais que se encontra no arquivo sobre o médico, político, intelectual, historiador e educador Édson Ribeiro me possibilitou escrever um perfil biográfico para a disciplina “Entrevista e Reportagem” do homem que é considerado por Antonila (olha ela aí de novo) “o cidadão juazeirense do século XX”.


As palestras e discursos de Édson apontam para uma Juazeiro em que a inauguração de uma placa dando nome a uma rua incitava longos discursos justificando a escolha e em que o papel do professor primário rural na educação sanitária do povo era discutido em palestras sobre a “profilaxia das moléstias infecciosas na escola”, destinadas aos próprios professores de escolas primárias.


Uma cidade que se reunia no cais, com direito a banda de música (a Apollo), para receber um filho da terra recém-chegado do “mundo”, como Joaquim Meirelles de Souza. O passaporte, válido até o dia 7 de dezembro de 1952, indica que ele tinha entrada permitida no Uruguai, Argentina, Bolívia, Chile, Peru, Equador, Venezuela, México, Cuba, Canadá e América do Norte. Juntinho do passaporte, um diário de viagens escrito a lápis.


Em todas as páginas escritas tem a numeração, o dia da semana, o mês, a data e o local. O
caderno, onde pelo estado de conservação se percebe o peso do tempo, inicia na Bahia (Salvador era considerada Bahia e ainda há quem considere), numa sexta, dia 21 de setembro e na página 3 e termina num sábado, dia 15 de dezembro, em Juazeiro. Seria difícil encontrar o ano se, no primeiro dia de outubro, ele não resolvesse escrever “1° de outubro de 1928”. Ler o caderno de Joaquim Meirelles é fazer um passeio por cidades como Belém, São Luís, Natal, Vitória, Maceió, Piranhas, Fortaleza, Rio de Janeiro, Uberaba, Belo Horizonte e, claro, Bahia, quer dizer, Salvador.


Por meio dos relatos, mergulhamos na estética de um ser errante. A memória das coisas se embaralha, os olhos do presente interrogam o passado: “O que será que Joaquim queria ao registrar estes lugares? Será que era para atiçar as lembranças, já no bojo de sua família juazeirense? Mas será que ele revisitou as lembranças destes lugares mesmo?”. Bem, o que sei é que, agora, este caderno é um lugar de lembranças, uma peça na composição memorialística das coisas.


Antes que me esqueça, o caderno de viagens de Joaquim Meirelles de Souza está na pasta 14: “biografias diversas de personagens da história local”. A mesma pasta em que, dentre tantos outros objetos, encontramos os traços biográficos do professor Luís Cursino da França Cardoso escritos por sua neta (ela mesma) Antonila, o texto “alguma coisa da vida de Dermeval de Ferreira Lima” e até mesmo os traços biográficos de Maria Franca Pires, responsável por recolher tantas “coisas de memórias” por ela vistas, lidas, ouvidas, sentidas, experimentadas e imaginadas ao longo de uma vida, que, por ora, se multiplica em seis pesquisas e em tantos outros relatos no trabalho quase arqueológico de inventariar as memórias das coisas de memórias…


Por Luis Osete, sobre a sua experiência como pesquisador de iniciação cientifica na arte da pesquisa sobre o acervo Maria Franca Pires e a historia cultural de Juazeiro