A "Terra Prometida" de Maniçoba

. 16 julho 2009

Sandálias de couro, calça de tergal, camisa de mangas compridas, aliança no dedo esquerdo e o inseparável boné na cabeça. É assim, com esta simples indumentária, que o agricultor José Alves dos Santos Filho, senta-se para prosear sobre a situação atual dos Perímetros Irrigados, em Juazeiro, região norte do estado da Bahia. Acomoda-se na cadeira da mesa da primeira refeição diária, na qual ainda restam alguns pedaços de pão, um pouco de café e leite fresco extraído da vaca a poucos metros dali. Tem o rosto enrugado, as mãos calejadas.

Histórias não faltam para este baiano que teve 12 filhos ao longo dos seus 65 anos de vida. Popularmente conhecido como “seu Deca”, José nasceu e criou a maior parte dos filhos no povoado de Conchas, localizado a 45 km da sede do município. No início da década de 80, quando “seu Deca” ainda vivia da cultura de frutas e grãos sustentados pela chuva, alguns veículos de comunicação da época discutiam de forma intensa o plano de implantação de mais alguns perímetros irrigados na região sanfranciscana. A

Revista Fatos do Vale reservava a editoria “Irrigação” onde abordava a importância da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (CODEVASF) para o entorno do Sub-médio São Francisco, sendo uma promessa para “salvar o Vale” e modificar substancialmente as condições de miséria em que vivia a grande parte de sua população. Os projetos de irrigação passaram pelas fases de estudo, implantação e produção até a sua plena operacionalização. 

No Pólo Juazeiro-BA / Petrolina-PE foram instalados os primeiros Projetos-Piloto de Irrigação – Bebedouro (1968), na cidade pernambucana de Petrolina; e Mandacaru (1971), no município baiano de Juazeiro, ambos implantados na vigência da antiga Superintendência do Vale do São Francisco (SUVALE), antecessora da CODEVASF. Os quatro Perímetros Irrigados localizados em Juazeiro, além de Mandacaru são: Tourão (1979), Maniçoba (1981) e Curaçá (1980).

Segundo a socióloga e pesquisadora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Edonilce da Rocha Barros, os perímetros surgem num cenário caótico de cessão de terra como elemento que iria conter os movimentos reivindicatórios, modo encontrado pelo regime Militar, nas décadas de 60 e 70, para barrar e abafar os movimentos de luta pela reforma agrária na região nordestina, como as Ligas Camponesas (1956).

Considerados como áreas de colonização “doadas” pelo governo para os pequenos produtores, identificados pelo Estado como colonos, tornam-se dependentes ao serem assentados nos seus respectivos “lotes”, pertencentes a uma área considerada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) como de colonização. Os agricultores que ocuparam os “lotes” nos Perímetros Irrigados foram aos poucos, inserindo-se na dinâmica produtiva do Vale.

Dois de maio de 1981. Esta data mudaria toda a rota de vida pregressa de “seu Deca”; da sua esposa, dona Helena Maria dos Santos, 64 anos; e dos seus 10 filhos, já que dois haviam falecido. Neste dia, parte da infra-estrutura do Perímetro Irrigado de Maniçoba, localizado a 32 km de Juazeiro, entrou em funcionamento e lá, as primeiras famílias de colonos assentadas começaram a produzir culturas com o apoio e assistência técnico-agrícola da CODEVASF.

Segundo Edonilce Barros, a ocupação do perímetro só foi completada em 1984, embora não tenham sido executadas plenamente suas obras de implantação. A socióloga destaca, por exemplo, a descontinuidade dos programas do Governo (não conclusão, falta de acompanhamento e avaliação) para revitalizar e dinamizar o processo produtivo do Perímetro. Problemas como esses fizeram com que José Alves quase desistisse de migrar para Maniçoba, pois não acreditava que o projeto fosse se consolidar.

Na época, era delegado sindical e acompanhou as pesquisas e análises de solo para fundação do projeto. Mesmo assim, “seu Deca” venceu o medo, arrumou a mudança e partiu em direção a “terra prometida”. Na cabeça, um turbilhão de lembranças de um tempo sofrido, constante labuta diária e pouco progresso. Já na bagagem, sonhos e perspectivas de um futuro promissor. De um dia poder “formar” os filhos, ver-lhes com uma profissão e boas oportunidades, as quais não pôde ter. Assim, o agricultor narra, emocionado, a realização em ver seus primogênitos com um outro ofício, que não seja o seu: colono. “Sempre dei prioridade a saúde e educação dos meus filhos. Via que aqui, em Maniçoba, tudo isso seria mais fácil. Creio que isso eliminou os meus fantasmas. Eu queria na verdade, e quero sempre, o bem estar da minha família. Não queria ver meus filhos passarem pelas mesmas dificuldades que eu passei. Das incertezas da plantação, do sol-a-sol, do duro trabalho na roça... Por isso, fiz questão que todos estudassem e dei oportunidade para cada um. Quem realmente não estudou, foi porque não quis”, diz o agricultor.

Oportunidade que foi conquistada por um dos seus filhos mais velhos, Autemir José dos Santos, 40 anos, que hoje vive de uma profissão totalmente distinta a do pai. Ele acabou trocando a enxada, o arado, o machado, o facão e o foice pelas seringas, agulhas, gazes e bisturi. As manhãs e tardes áridas do sol causticante da roça foram trocados pelas diárias e plantões nos postos de saúde e hospitais da região. Autermir não quis de forma alguma seguir o oficio de colono e, atualmente, trabalha como Técnico em Enfermagem.

Nas manhãs, ele compõe o corpo de enfermagem do Posto de Saúde da Família de Maniçoba. Em noites alternadas, faz plantão num hospital de urgência e traumas em Juazeiro.

Na farmácia do Posto de Saúde, o rádio, na sintonia AM, impõe a trilha sonora, enquanto Autemir José demonstra saudosismo e emoção ao relembrar sua história de vida, admitindo que não gostava de estudar e, até seus 17 anos, não tinha outra opção a não ser trabalhar na roça na companhia do pai. “Até meus 17 anos não via outra coisa para mim a não ser trabalhar na roça. Eu não gostava de estudar, fiquei um bom tempo parado, só ajudando meu pai mesmo. Lembro que, quando completei 18 anos, fui descobrindo os verdadeiros sonhos do meu pai e vendo as terríveis dificuldades que ele passava. Aos poucos, fui percebendo que aquilo não era o que realmente eu queria”, diz o técnico.

Segundo ele, faltava um incentivo, uma palavra de alguém para que fizesse enxergar nos estudos a transformação social. Foi quando ouviu, por acaso, seu pai conversar com um amigo e dizer que seu maior sonho era ter um filho “formado” e que não mediria esforços para que isso acontecesse. Fazia de tudo para eles estudarem, mas não tinha certeza se um dia ia ter este prazer. Aquelas palavras era o que Autermir realmente precisava para ver nos estudos uma via necessária para sua vida.

Em 1993, com 25 anos de idade, Autemir conclui o curso Técnico de Enfermagem no Colégio Democrático Estadual Professora Florentina Alves dos Santos (CODEFAS), em Juazeiro, onde morou alguns anos numa casa comprada por “seu Deca”, no fim da década de 80, para que os filhos pudessem concluir o antigo segundo grau (Ensino Médio). À época, em Maniçoba, só havia o Ensino Fundamental. Era a realização do pai e a mudança de vida do filho, que se senti, hoje, realizado com a profissão e vê que tudo que passou valeu a pena, tanto para seu desenvolvimento pessoal quanto profissional.

Apenas dois dos filhos de “seu Deca” não terminaram o Ensino Médio, mas mesmo assim, não vivem como colono. Dos outros, alguns fizeram o curso de Técnico Agrícola, outros o antigo Científico (Médio). Uma das filhas mais novas, Luzinete Helena, 33 anos, concluiu o curso de Pedagogia na UNEB e neste ano finalizou o curso de Pós-graduação em Educação Especial Inclusiva pela Universidade Norte do Paraná (UNOPAR). Carmem da Silva Mota, 29 anos, é uma outra filha de colono que compõe as estatísticas das mudanças sociais que transformam a qualidade de vida em Maniçoba. Ela é um outro exemplo dos filhos de colonos que prosperaram, diferentes dos pais, e hoje fazem cursos de nível superior na cidade para terem uma outra profissão.

Estudante do curso de Administração, ela também trocou a labuta da roça em busca de uma outra situação de vida. “Cheguei com quatro anos de idade em Maniçoba e aqui vi muita coisa mudar. Gosto da roça, mas não para trabalhar nela. Meu pai nunca nos forçou a este serviço. Muito pelo contrário, sempre deu total apoio para que estudássemos e tivéssemos uma profissão diferente da dele. Por isso, faço todo esforço para estudar”, afirma Carmem. Ela ainda mora em Maniçoba. Pretende terminar os estudos, ser aprovada em um concurso público, mas não pensa em abandonar a terra que lhe viu crescer. Trabalha durante o dia como Auxiliar Administrativo numa empresa de assistência técnica aos produtores, no Projeto; à noite vai para faculdade, na cidade pernambucana de Petrolina. “Para mim, é um grande desafio, às vezes cansativo, mas creio que em breve a recompensa virá. Agradeço estas conquistas a meu pai que sempre me deu apoio em tudo”, declara a auxiliar administrativo.

As transformações ocorridas nas dinâmicas político-sócio-culturais no Perímetro Irrigado de Maniçoba são visíveis. A maioria dos moradores afirma que muita coisa mudou. Além das mudanças sociais, a estrutura física do Perímetro se modificou vertiginosamente. Cerca de 5.200 pessoas reside hoje na localidade, segundo dados da Equipe Saúde da Família. O cenário rural - de roças - foi se “urbanizando”, dando espaço ao volumoso comércio e ao grande número de residências. No entanto, a estrutura física tendeu a não acompanhar o ritmo acelerado do crescimento. A maior parte das ruas não é asfaltada, alguns esgotos correm a céu aberto. Ainda sem saneamento básico, as pessoas penam por soluções. Enquanto alguns colonos amargam o árduo endividamento devido a cobrança de taxas água e manutenção cobrada pela CODEVASF. Mesmo assim, o povo maniçobense insiste em manter no olhar o brilho e a esperança por melhores condições de vida e agradecem a Deus pela bênção da “terra prometida”, como a comunidade descreve o projeto Maniçoba.

                                                      Por Micael Benaic, Jornalista em Multimeios Fotos Emerson Rocha