Abre-alas para O Banjo

. 17 fevereiro 2010

Eu sou O Banjo. Estou às vossas ordens com a afinação pronta, toda super harmoniosa para dar-vos a melodia estonteante e deliciosa das músicas populares que são a vida, a alma, o ornamento dos folguedos que S. M Rei Momo dirige com uma soberania soberbamente carnavalesca!Era desta forma que se anunciava O Banjo, folheto de modinhas musicais produzido por José Assis, um dos tipógrafos com maior produção jornalística na cidade de Juazeiro, norte do estado da Bahia (500 km da cidade de Salvador).

José Assis, mais conhecido como Seu Zezito, foi um homem de muitos ofícios, foi músico, jornalista e dono de tipografia, onde imprimia todo tipo de arte gráfica: jornais, convites para casamento, boletos, talonários de notas fiscais. Da sua prensa tipográfica, costuravam-se ideias, publicavam-se acontecimentos, mas a pequena prensa artesanal precisava recorrer aos prestadores de serviços diversos para que a alma de pasquineiro pudesse ter vida longa.

Humor será sempre subversivo

Assim, este jornalista ribeirinho publicou, entre os anos 1930 a 1960, os principais jornais que circularam na região como O Astro; O Banjo; o satírico A Marrêta; o literário Jacumba, O Itiubense, publicado na cidade baiana de Itiúba onde residiu por um período, e O Esporte, com vínculos com a Liga Desportiva Juazeirense. Também publicou o jornal informativo O Sertão e foi um trabalhador da notícia, colaborando como Editor de A Tribuna do Povo, propriedade de Jorge Gomes. Na década de 60, A Tribuna marca o período de transição na imprensa juazeirense, assumindo uma perspectiva mais profissional, com periodicidade quinzenal, equipe de colaboradores e com publicidade.

Homem simples e com parcos recursos, Zezito vivia da notícia e para a notícia. A grande maioria dos seus jornais teve vida efêmera, sujeita às efemérides dos recursos disponíveis na gráfica e da necessidade de sustentar a sua prole. Tarefa nada fácil. Dono de pequena imprensa, precisava de anúncios, alguns receberam agradáveis réis de lojas tradicionais como Bazar Royal, outros periódicos como o satírico A Marrêta não recebia tanto atenção dos comerciantes locais.

Afinal, humor é coisa ciosa, não pode ser feito por qualquer um, bem como não serve para muitos. Humor é coisa fina e, muitas vezes, causa desabor, em terras inglórias pode trazer até mesmo prisões, infortúnios. O homem que se dedica ao humor cutuca onça com vara curta, e quase sempre certeira. Se a vara se alonga demais, atinge com sua ponta aqueles que não têm senso de humor para levar a vida com honestidade, competência e sabedoria. O humor será sempre subversivo, uma arma, principalmente para o jornalista que acredita na sua verve e pena.

“Prestígio e muita cotação”

Vida longa teve a sua criatividade, o seu espírito de homem de imprensa. Nada parecia impedir Seu Zezito de colocar o jornal nas ruas. Em dias de carnaval, O Banjo publicava as marchinhas dos músicos ribeirinhos como Dario Ferreira e o próprio Zezito e também as melodias cariocas, que chegavam por essas terras pelas mãos de senhorios com recursos para comprar jornais cariocas ou disco de vinil a cantarolar nas vitrolas. Ao leitor generoso, Zezito pedia que comprasse o jornal por 200 reis, e se quisesse também poderia adquirir a partitura feita por Dario Ferreira por 1 reis, afinal O Banjo precisava na próxima festa de Momo circular pelas ruas estreitas do centro juazeirense.

No carnaval de 1935, o folhetim anunciava o sucesso carioca Marcolina, de Assis Valente.

Marcolina, Marcolina
Deixa que eu seja o teu vestido
Teu vestidinho
De seda fina
Te darei tanta beleza
Distinção ao teu perfil
Que te chamarão francesa
Em vez de moreninha do Brasil....

Se a marchinha fazia uma alegoria dos carnavais dos grandes salões, os músicos Zezito e Dario Ferreira procuravam enaltecer a beleza da moçoila ribeirinha em Teu prestígio volta!:

Morena,
Morena,
Vou te proclamar rainha
Vou te colocar na linha

Você
que foi tão desprezada
E ficou mal arranjada
Cá no meio do cordão
Agora
Você vai ter prestígio
E na bolsa da folia
Terás muita cotação...

Um Clássico “Erramos”

E seria assim a cada festa momesca, o pequeno folheto a circular pelas ruas da cidade banhada pelo São Francisco. No carnaval de 36, a marcha “Ba Be Bi Bo Bu” anunciava a mocinha frajola que os moços Zezito e Zeca Viana eram “bamba, eram da escola, e não apenas do samba”.

Mas é carnaval, a cidade se modifica, as marchinhas são destinadas agora as disputas carnavalescas mais acirradas em terras sanfranciscanas, tudo era feito para atrair os foliões das tradicionais e rivais Sociedades Filarmônicas 28 de Setembro e a Apolo Juazeirense, onde as senhorias e senhorios mais abastados brincavam o carnaval. Na marcha composta para a 28 de Setembro, o tipógrafo e músico compôs na primeira página:


A velha 28 sempre em cena
Morena
Morena
A nossa turma que não tem rival
É bamba em carnaval...

Mas, ao folhear a segunda página, o leitor se depara com a notinha Em Tempo...Eis ai, um clássico Erramos, feito pelo minucioso tipógrafo que submeteu a marcha à aprovação da Diretoria da Sociedade antes de colocar na prensa a segunda página. A nota de Em Tempo anunciava: “a pedido da 28 de Setembro fazemos aqui uma modificação na sua marcha que é a seguinte, envez do que todos leram na primeira página”:

..O nosso bloco que não tem rival
É invencível pelo Carnaval..

Criada em 1897 pela elite juazeirense, a 28 de Setembro não gostou da expressão “turma’, termo mais comum, substituindo-a por “bloco”; já a expressão malandra “bamba” foi excluída. Afinal, ser “bamba” não combinaria talvez com o glamour dos bailes da 28 de Setembro.

“Sou bicho malvado”

Já para embalar os bailes da Apolo, de quem o tipógrafo recebeu um gentil convite para comemorar os festejos, como publicou no seu jornal, a marchinha anunciava:

Moreninha formosa
Deixa de ser tão teimosa
Vem para turma cor de rosa
Sê graciosa
Neste cordão
Deixa de ser tão teimosa
Vem me dar teu coração

Lado a lado, coluna junto com coluna, as duas marchinhas foram entoadas pelos foliões da elite cultural e econômica da cidade. Já os artistas, artífices, mestres de obras só podiam bailar nos salões da Sociedade Beneficente dos Artífices Juazeirenses.

Mas é carnaval, o Rei Momo pede passagem para que todos caíam no samba, quem é pobre se torna rico, pelo menos por um dia será príncipe, princesa, rei, senhor de tudo. Quem é rico, deseja ser um príncipe roto. Tudo é permitido na festa de Baco. A moça frajola se interessa pelo jovem galanteador, a moçoila mascarada encontra o seu Pierrot, e todos saem a cantar a marchinha Sou da Fuzarca, dos músicos Edson Lima e Zeca Viana:

Sou da Fuzarca
Sou da Fuzarca
Sou igualzinho a mulata

Sou da Fuzarca, meu bem
E da mulata também
Não tem igual a mim
Eu sou um bicho malvado
Na escola de samba matriculado...
Ninguém acha ruim

Um homem de seu tempo

Assim pelas páginas do pequeno folheto, Zezito, o homem de muitos ofícios, imprimia para a posteridade a história cultural da cidade. Homem de muitos talentos, sua história como comunicador é pouca conhecida. Seus periódicos sofreram com as intempéries do tempo, mas muitos sobreviveram e compõem o acervo da Fundação Museu Regional do São Francisco, graça ao esforço de seu filho Joston Assis, que os doou à instituição, e foram guardados por Rosy Costa, a fiel guardiã do museu.

Mas a história de Seu Zezito ainda estar por ser narrada, descoberta em nuances que revelem os circuitos de comunicação existentes entre uma pequena imprensa artesanal do interior e a grande imprensa que circulava no país. Afinal, as técnicas de impressão já circulavam pela cidade ribeirinha e introduziam mudanças sociais e culturais; já as marchinhas de carnaval produzidas por músicos como Assis Valente também foram entoadas pela comunidade, em um período no qual a cidade não dispunha de emissora radiofônica, nem do sistema de alto-falante e poucas eram as pessoas que tinham vitrola.

Responsável pela publicação de diversos jornais, Seu Zezito foi um homem de seu tempo, feito com a mesma fibra dos jornalistas pasquineiros do século XIX que carregavam nas tintas do prelo de madeira a vontade de se comunicar. Para isso, bastava que tivesse alguns reis para poder imprimir suas ideais e fazer circular o seu jornal a cada semana de carnaval.

Por Andréa Cristiana Santos
Jornalista e professora do DCH-UNEB. Texto publicado no Observatório da Imprensa, e produzido a partir do material coletado na pesquisa Tempo, História & Memória dos Profissionais da imprensa do Pólo Juazeiro-Ba e Petrolina-Pe, pelo bolsista FAPESB-Ba Thiago Gonçalves, Adzamara Amaral e Emerson Rocha. E-mail: andcsantos@uneb.br