A "Via Crucis" de Gildete Lino de Carvalho

. 30 março 2010
Venho dessas plagas. No limite de Pernambuco com a Bahia – Petrolina e Juazeiro. Bebi dessa sede. E a procissão de homens que eu vi fugir do horrendo monstro-a-seca-chamo-a de Via Crucis, obra que apresento ao público, com os recursos da pintura no azulejo e da poesia.

É desta forma que Gildete Lino de Carvalho, psicanalista, artista, escultora, poeta e desenhista, apresenta a sua obra “Via Crucis”, poema produzido a partir de signos verbais e não-verbais que se complementam a partir dos recursos da pintura no azulejo. Filha do jornalista e poeta Cid Almeida Carvalho, a petrolinense Gildete considera a arte tão fundamental quanto o ato de respirar. É, por meio da junção entre a expressão da arte visual e da arte literária, que a poetisa se expressa.

Para cada pintura no azulejo um canto sertanejo, típico dos repentistas da literatura de cordel, expressão literária do nordestino. Distribuída em 14 estações, a “Via Crucis” de Gildete é um verdadeiro paralelo entre o caminho de Jesus Cristo para o Calvário e o caminho durante toda a vida do nordestino e sua família até a morte.

Tamanha é a exaustão do Cristo
que segue trôpego!
Que difícil caminhar!
Pela vez terceira, cai.
Ai!...

Já não anda o retirante,
nem braços p’ra se apoiar.
O corpo já flagelado
de buscar
não encontrar.
Menos vida, mais morrer,
é assim seu caminhar!

As pinturas nos azulejos mostram o drama da paixão de Cristo como se desenrolasse no Nordeste. E a multidão que acompanha e participa da subida do Calvário é composta por tipos do Sertão que trazem as marcas do sofrimento, da fome e da miséria estampadas. Além disso, a poesia, em conjunto com as imagens imprimidas nos azulejos, descreve a vegetação da caatinga com os gravetos em troncos secos e terra rachada. Contudo, essa mesma descrição da paisagem é o próprio reflexo do nordestino retirante, com a cara angulosa, envelhecida, sulcada e provida de marcas que revelam o sofrimento e a tristeza inevitável.

O nordestino sofrido
enrugado, envelhecido
deixa imprensa
a sua queixa,
nos sulcos que se abriram
na terra seca rachada,
incendiada de dor.
Quem olha para os gravetos,
labareda esfuziante
em tronco seco
sem cor

sem o querer
a imagem do retirante.
Imagem que se repete
nas mãos
no rosto
na planta dos próprios pés.


Diferentemente de Jesus Cristo, que carregou a cruz a caminho do calvário, o pobre retirante carrega a cruz da existência e da sina traçada.

Nu,
sem vestes limpas,
sem letras,
sem nada,
este homem, nordestino
abandonado menino
teve a sua sina traçado
de nascer
em terras incendiadas
pelo sol esturricante
onde a seiva é roubada
numa torrente constante de sóis...e sóis,
na claridão do horizonte!

A mulher nordestina, misto de sofrimento e força, é vista na “Via Crucis” como Maria, mãe de Jesus, e companheira inseparável.

Eis então
na própria história
outra força
que enxuga o pranto
que recebe a cruz
e envolve-a no própria manto
- a mãe do Cristo Jesus, Maria!

E o nordestino
pela estrada prosseguindo
dizendo-se forte
à sombra do seu andar incerto
muito perto,
a força da companheira
multiplicada a seus pés.

“Via Crucis” é também uma obra de crítica social que revela a realidade nua e crua, de sofrimento, esquecimento e exclusão social a qual o nordestino é submetido.

E o retirante,
nu, desde o leito,
com o sentimento no peito,
sem saber que é cidadão.
Tiram-lhe bem cedo,
as vestes do entendimento,
do cosmos que é seu também
e os lustres da instrução,
para sempre dizer sim,
para nunca dizer não!

Jesus Cristo é crucificado, e o nordestino estigmatizado, a qual a vida era pouca, dá adeus ao seu Sertão.

Desde menino,
vem morrendo, o retirante nordestino.
Longo desterro, o seu!
A terra a tremer sob os pés!
Pela primeira vez embalado,
desde que deixou o torrão amado!
É o seu magro enterro!
Em silêncio,
passa à sepultura,
depois de haver sonhado
com o prado verde,
a relva fresca,
o sol em tom desmaiado,
a chuva beijar os galhos secos
e a explosão de vida
a colorir a estrada,
a encher de amor a própria lida!

E o silêncio se faz!
Aqui o nordestino jaz.



E a sua sina se faz!


Por Edilane Ferreira, bolsista de iniciação científica do projeto “O Arquivo de Maria Pires: memória e história cultural em pesquisa na região de Juazeiro-BA”, que selecionou, nesta semana santa, a obra “Via Crucis”, de Gildete Lino de Carvalho.