Jovens e adultos utilizam experiências de vida para ter acesso à leitura e à escrita

. 16 agosto 2010

“O jovem adulto aprende de forma diferente da criança. A leitura que ele leva para a escola é uma leitura de vida, de experiência, de mundo. Se ele não soubesse ler, já teria morrido na sociedade.” É desta forma que a professora Maria da Conceição Hélio Silva, doutora em Letras e Lingüística e docente do Departamento de Ciências Humanas, da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), acredita na eficiência da alfabetização através da metodologia do letramento para educar Jovens e Adultos (EJA).

O letramento é apontado como uma nova forma de aprender a ler e escrever. Diferente da alfabetização tradicional, o aluno desenvolve a leitura e escrita utilizando suas experiências de vida e conhecimentos prévios. “Ele lê pela forma, pela cor, pela imagem, pelo som, pelo cheiro”, declara a entrevistada. Dentre suas experiências, ela destaca o trabalho realizado em Moçambique, país que tem o português como uma das línguas oficiais, e cuja realidade tem semelhança linguisticamente falando com o Brasil. “Eles sabem o que querem e têm pressa de aprender, igualmente respostas que são dadas aqui”.
Em entrevista ao MultiCiência, a professora fala dos projetos de educação criados pelos governos no Brasil para suprir as deficiências da alfabetização, já que 14 milhões de jovens com mais de 15 anos são analfabetos no país, de acordo com pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Na opinião dela, esses programas são muito úteis, mas não são suficientes para atender a demanda.


Multiciencia: Qual a importância de letrar ao invés de alfabetizar?

Maria da Conceição: Alfabetizar é o aprendizado das letras, aprender os elementos da leitura e escrita. Letrar é saber fazer o uso social da leitura e da escrita, ler atribuindo significação e escrever sabendo por que e para que.

M: Quais as maiores dificuldades em se trabalhar leitura e escrita com jovens e adultos?

MC: Eu não sei se haveria uma dificuldade maior. Porque o jovem e adulto ele aprende diferente da criança, por ter o perfil muito mais amplo, por ter experiência acumulada, por ser um individuo sócio-historicamente mais preparado e com vivências. Ele já sabe ler, só que em uma concepção diferente da que normalmente se vê. A leitura que o jovem e o adulto levam para a escola é uma leitura de vida, de experiência, de mundo. Se ele não soubesse ler, ele já teria morrido na sociedade. Ele tem estratégias, justamente por ser um adulto experiente e vivido. Por exemplo, um adulto que mora em um determinado local não erra o ônibus que tem que pegar, porque ele lê as cores, ele lê a forma das letras, ele vai ao supermercado e identifica o tipo de fubá de milho ou a pasta de dente, a que está acostumado a usar. Então ele lê pela forma, pela cor, pela imagem, pelo som, pelo cheiro.

M: Hoje no Brasil, percebe-se o aumento de projetos relacionados à alfabetização de Jovens e Adultos, como o Paulo Freire em Pernambuco e o TOPA na Bahia. A senhora acha que programas como esses são a solução para erradicação do analfabetismo no país?

MC: Sem dúvida a contribuição desses projetos é muito grande, em geral os resultados são muito bons. A metodologia que é utilizada por esses programas é muito boa, inclusive muitas vezes superior a que é usada nos cursos regulares e eu tenho visto nesse sentido resultados muito bons. Se o período de tempo fosse um pouco maior, talvez os projetos fossem um pouco mais eficientes. Na minha concepção, eles são muito úteis, mas não basta.

M: Quanto à formação desses alfabetizadores, ela tem sido eficiente?

MC: Normalmente os alfabetizadores convocados para participar desses programas são pessoas que nem o ensino médio têm, com muita dificuldade de escrita e de leitura. Então, ao mesmo tempo em que se fazem os trabalhos de formação, tenta-se suprir e ajudar o próprio alfabetizador para que ele não passe para os alunos o mesmo problema que tem. É um trabalho de dupla ação. Enquanto ele é preparado para ser alfabetizador, ele também se alfabetiza na perspectiva do letramento.

M: Quais as maiores falhas da alfabetização tradicional, sem os moldes do letramento?

MC: O objetivo de uma turma de jovens e adultos é atender aos interesses imediatos dele, que é ler e escrever, pois eles têm pressa, querem arranjar um emprego, melhorar o nível no trabalho. Tem objetivos claros. Muitas vezes, o professor não está preparado, e acaba caindo no procedimento mais tradicional, ficando apenas na alfabetização, não desenvolvendo muito a questão da oralidade, na verdade é um trabalho muito mais de quadro e giz. É uma alfabetização que se baseia muito mais no texto do livro do que no texto vivo, que é o aluno. É comum acharem que não sabem nada, que não sabem falar nem escrever e isso é o que a sociedade passa para eles, que só a escola vai ensiná-los a aprender. Também a forma como o professor vê esse jovem e adulto prejudica o andamento do trabalho em sala de aula, que muitas vezes reforça isso, sem se considerar os conhecimentos prévios do aluno, as experiências de vida e de interpretação da realidade que não são usadas como objeto de estudo e ponto de partida para a alfabetização.

M: Como foi a sua experiência com alfabetização em Moçambique?

MC: Como lingüista, fui para esse projeto com o papel de fazer a caracterização lingüística das comunidades e das províncias onde o programa Alfabetização Solidária iria ser implantado. Nessa primeira etapa, eu fiz o projeto que foi aprovado pelo programa, apliquei questionários na comunidade onde o programa seria implantado. Algumas perguntas como: Por que vocês querem aprender português? E eles respondiam semelhante aos brasileiros: “nós queremos aprender português, porque queremos aprender ler e escrever, queremos negociar com nossos fornecedores, não queremos ser enrolados por eles, queremos ler e escrever cartas.” Com base nisso e outras perguntas e respostas que eles deram nos questionários, montei junto com meus companheiros, que iriam comigo dar as capacitações aos alfabetizadores, a proposta de formação de alfabetizador. Uma peculiaridade nessa proposta era formar alfabetizadores que fossem bilíngües e que morassem na própria comunidade onde iriam alfabetizar, ou seja, que falassem o português moçambicano e a língua da própria comunidade. Com objetivo de fazer a ponte entre o que ele aprenderia com a gente e o que iria passar. Porque no questionário os alunos disseram: “Nós queremos aprender português, mas não queremos abandonar nossa língua”. Era essa a proposta levada e foi essa que se confirmou com as respostas que eles deram. Foi uma proposta fundamentada no respeito à cultura e a língua como característica cultural do individuo que deve ser respeitada.

M: Que paralelo poderia ser feito entre o ensino de Jovens e Adultos em Moçambique e no Brasil?

MC: O paralelo que eu faria, a partir dos questionários que apliquei e das respostas dadas, é que são muitos parecidas. Eles sabem o que querem, tem pressa de aprender, sabem por que querem aprender a ler, igualmente respostas que são dadas no
Brasil. A caracterização do jovem e adulto em Moçambique é a mesma dos nossos jovens e adultos brasileiros. A concepção que eles têm da condição deles também é muito semelhante. Acham que não sabem nada, que são desprestigiados, que são humilhados semelhantes aos nossos brasileiros. O processo de aprendizagem também é muito semelhante. Parece-me que a forma como o adulto aprende a ler é bem universal.


Por Anna Charlotte (texto)
Raphael Barbosa (foto)
Matéria publicada com exclusividade no jornal Gazzeta do São Francisco 14 a 16 de agosto