Lirismo e sagacidade compõem a obra Cadernos Negros

. 05 dezembro 2010



“O jornalismo me escolheu”, afirma Luís Osete Ribeiro Carvalho, formado em Comunicação Social – Jornalismo em Multimeios pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e atualmente cursa pós-graduação em Ensino da Comunicação Social. Mas apesar da escolha pelo jornalismo, Osete é um amante da literatura e há dois anos é professor de Literatura, no cursinho Universidade para Todos (UPT), da UNEB.

Para ele a sociedade brasileira pouco aproveita da literatura, tomando-a sob duas formas: entretenimento ou obrigação. “Como entretenimento, tem-se a chamada literatura de massa, feita ao consumo fácil e aversa à experimentação. Como obrigação, temos alguns cânones literários anualmente indicados pelos vestibulares”, declara Luís Osete.

Em entrevista ao Multiciência, ele expõe para o leitor a obra Cadernos Negros (os melhores contos), da Antologia Publicada pelo Fundo Nacional de Cultura – MinC, e explica alguns dos poemas publicados.
“Cadernos Negros” são poemas que têm raízes ancestrais e desenvolvem a reflexão poética sobre a vida e a cultura dos afro-brasileiros. Eles começaram a ser publicados em 1978, com a participação de escritores negros militantes do movimento estudantil de esquerda de diversos lugares do Brasil. A linguagem é extremamente carregada de expressões de origem Ioruba, tomadas de empréstimo aos rituais de candomblé. Como o Benedito Cintra escreve, no prefácio do livro, “o conjunto da obra põe à luz, com lirismo e sagaci¬dade, um pouco do universo simbólico e do cotidiano do negro; dos seus sonhos, de sua indignação, seu protesto”.

Segundo Luís Osete, os poetas apresentam temas como a valorização do corpo negro em desafio aos modos hegemônicos de representação, a constante evocação de figuras emblemáticas na história de luta e afirmação étnica, como Zumbi, Luiza Mahin, Mandela, Cruz e Souza, e a discussão da identidade negra a partir de noções como diáspora e hibridismo cultural.

No poema "Linhagem”, de Carlos de Assumpção, por meio do verso “Eu sou descendente de Zumbi", o poeta evoca uma ancestralidade, a trajetória de batalhas dos afro-descendentes no Brasil, cujas raízes remontam a Palmares e ao guerreiro que melhor simbolizou a trajetória do quilombo.

Os poetas também mergulham em vários temas, como a fome, o feminismo, a violência urbana, a batalha das classes excluídas e o preconceito racial contido nas relações humanas do dia-a-dia. “Carlos de Assumpção problematiza muito o perfil das relações raciais e suas conseqüências nas desigualdades sociais, ao escrever uma poesia de forte apelo político-ideológico, realçando a importância da mobilização coletiva para conquistar a emancipação do negro”, afirma o jornalista.
A problematização do perfil das relações raciais e suas conseqüências nas desigualdades sociais e, principalmente, a desleitura poética de textos canônicos, como forma de levar à discussão o perfil de nação criado pela produção literária brasileira são características abordadas pelos autores dessa obra. Como mostra o poema a seguir retirado da antologia.
A outra Negra Fulô (Oliveira Silveira)

O sinhô foi açoitar
a outra nega Fulô
- ou será que era a mesma?
A nega tirou a saia
a blusa e se pelou
O sinhô ficou tarado,
largou o relho e se engraçou.
A nega em vez de deitar
pegou um pau e sampou
nas guampas do sinhô.
- Essa nega Fulô!
Esta nossa Fulô!,
dizia intimamente satisfeito
o velho pai João
pra escândalo do bom Jorge de Lima,
seminegro e cristão.
E a mãe-preta chegou bem cretina
fingindo uma dor no coração.
- Fulô! Fulô! Ó Fulô!
A sinhá burra e besta perguntava
onde é que tava o sinhô
que o diabo lhe mandou.
- Ah, foi você que matou!
- É sim, fui eu que matou –
disse bem longe a Fulô
pro seu nego, que levou
ela pro mato, e com ele
aí sim ela deitou.
Essa nega Fulô!Essa nega Fulô!

Para o professor, neste poema, Oliveira Silveira faz uma "desleitura poética" de um texto canônico: o poema “Essa Negra Fulô”, do escritor modernista Jorge de Lima. Enquanto a Negra Fulo, de Jorge de Lima, se rende aos desejos sexuais do Sinhô, roubando-o da Sinhá, a outra Negra Fulô de Oliveira Silveira é uma mulher altiva, consciente de suas vontades e dona de seus desejos. “Neste sentido, o corpo, ao invés de aprisionar a mulher negra ao Sinhô, serve como um palco de luta e emancipação da mulher negra. Em suma, o poeta fez uma "desleitura" de um poema clássico e propõe outra leitura sobre a história da mulher negra no Brasil colônia”, explica Luís Osete.

por Karine Nascimento (texto)