Pesquisadora analisa práticas de convivência com o semiárido

. 03 outubro 2011


Ao longo do século XX, livros, cinema e os meios de comunicação, como a televisão e jornais, reproduziram uma imagem do semiárido como um lugar de extrema pobreza, de seca, uma terra inóspita e com uma vegetação pouco diversificada, apenas xique-xique e mandacaru. Essa visão se tornou conhecida através das imagens de mulheres carregando latas para buscar água, animais mortos em decorrência da estiagem prolongada e o êxodo de jovens de terra sertanejas para conseguir trabalho nas grandes cidades.

Para pensar outras possibilidades de vivência na região semiárida, estudiosos e militantes de organizações não-governamentais desenvolvem experiências inovadoras na concepção da Convivência com o Semiárido, cuja proposta é pensar alternativas de uso racional da água, da terra e de políticas públicas que possam gerar renda e preservar a biodiversidade. Assim, a escassez de água pode ser amenizada pela cisterna, com capacidade de armazenamento para consumo humano e para implantação de hortas comunitárias.

Para discutir essas alternativas, a professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Territórios Semiáridos (PPGESA), da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Luzineide Dourado, desenvolveu tese em Geografia que refletiu como as redes sociais formadas por organizações não-governamentais contribuem para estimular essas novas práticas sociais.

Na tese, a pesquisadora documentou algumas mudanças na percepção do mundo que as pessoas do semiárido tinham a respeito da região. Em entrevista à Agência MultiCiência, Luzineide discute alguns aspectos do estudo.


MultiCiência: A sua tese procura avaliar como o projeto de Convivência com o Semiárido forma redes sociais que reúne diferentes bandeiras de lutas sociais em uma nova concepção de território. Que redes são essas?
Luzineide Dourado: As redes que identifico são as da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA BRASIL) e Rede de Educação do Semiárido Brasileiro (RESAB). O trabalho é compreender exatamente como se estabelece a ressignificação a respeito das práticas do semiárido. Percebemos que o envolvimento das famílias agricultoras e cooperativas traz uma nova sociabilidade porque abriga diferentes bandeiras de luta e a convivência se tornou uma causa comum.

MultiCiência: Esse processo pode formar uma nova concepção de território?
Luzineide Dourado: Certamente. Para refletir sobre isso, recorremos ao filósofo Martin Heidegger, que escreve sobre a mundanidade do homem, ou seja, a concepção que o homem tem do lugar que o cerca e condiciona sua percepção. Na pesquisa, notamos que essas redes difundem um sentido de ser-no-mundo diferente daquelas que estabeleceram estereótipos. O território ganha um novo estatuto porque valoriza as práticas tradicionais das famílias agropastoris, promovendo o enraizamento das pessoas no lugar que vivem.

MultiCiência: Como a senhora avalia a eficácia dessas práticas de convivência?
Luzineide Dourado: Estabelecemos três práticas: o uso da água; uso social da biodiversidade da caatinga, a partir da exploração do extrativismo e o acesso à terra. A eficácia não é só econômica, que tem aumentado de 30% a 40% a renda das famílias. Os produtos derivados do beneficiamento de árvores nativas da caatinga, como doces, mel, geléia de umbu ou maracujá do mato, também resultam em “processos identitários” porque agregam o valor cultural além do econômico. Há uma valorização do meio rural, que não é mais visto como um lugar sem possibilidade. Percebemos o retorno de filhos que estavam em outro espaço. Muitos jovens têm participado dos projetos de geração de renda e construindo outras relações nesse ambiente.

MultiCiência: Como tem sido a participação do Estado nesse processo de pensar o território?Luzineide Dourado: O Estado entra com parte, como exemplo o programa 1 milhão de cisternas (P1MC) que tem forte apoio financeiro. O governo federal acatou essa ideia. Porém, existe uma contradição: ao mesmo tempo que o Estado incentiva práticas de convivência, também reedita ações de combate à seca. Um exemplo é a transposição do Rio São Francisco. A luta das organizações que compartilham do projeto da convivência com o semiárido é tornar a convivência uma política pública. O Estado ainda não compreendeu que o contexto de vida, de valores simbólicos e imaginários daqueles que vivem no semiárido deva ser uma política pública.

MultiCiência: E para promover essa mudança a educação contextualizada também deve ser implementada?
Luzineide Dourado: Identifiquei que, nas regiões onde se tem experiências de educação contextualizada, o projeto de convivência com o semiárido tem mais chance de dar certo. Um exemplo é a Cooperativa Agropecuária de Canudos, Uauá e Curaçá (COOPERCUC), situada nesses municípios. É uma estrutura de organização com gestão descentralizada muito interessante. Para se chegar a esse nível organizacional, foi necessário um método educativo, baseado na educação contextualizada que fundamentou toda essa gama de possibilidades.

MultiCiência: Em que a Senhora percebeu a maior mudança?
Luzineide Dourado: O maior impacto positivo é na vida das mulheres. Foi uma surpresa muito grande. Só de pensar que as mulheres do semiárido passavam metade da vida carregando água e, agora com as cisternas ao lado da casa, elas ficaram mais livres para exercer outras atividades. Encontramos mulheres na direção de mini-fábricas à frente dos projetos de geração de renda. Se formos pensar no ganho social dessas conquistas, é uma verdadeira revolução. Os jovens, como falei anteriormente, também estão envolvidos nesse processo, porém as transformações mais significativas ocorreram para as mulheres. Isso é muito interessante.

Por: Laércio Lima (texto e foto)
Matéria Publicada no Gazzeta do São Francisco.
Atualizada em 08/12/2016