“Driblamos os militares e fizemos música com amor e criatividade”

. 15 junho 2014
  
Ate o final de julho, o cantor, compositor e ex-integrante do Novos Baianos Paulinho Boca de Cantor, percorrerá,várias cidades do estado da Bahia além de pontos da capital levando para as novas gerações  seu projeto A História da Música na Bahia, que faz um mapeamento dos compositores e canções que atravessam mais de meio século na nossa memória musical. O espetáculo relembra os sambistas do passado, a Bossa Nova, o Tropicalismo, o rock de Raul Seixas, o forró, o axé-music até se esbarrar no pagodão e no arrocha contemporâneo. Criado em Santa Inês, no Vale do Jiquiriçá, Paulo Roberto Figueiredo de Oliveira, o Paulinho Boca de Cantor, chegou à capital nos anos 60 e carimbou seu nome nessa história. Em entrevista para o Multiciência, aos jornalistas Emanuel Andrade, Jota Menezes e Cleilma Silva, o compositor abriu sua caixa de histórias.

M - Nesse projeto A Historia da Musica na Bahia, você faz um mapeamento de compositores e estilos que atravessam meio século. É uma contribuição, à nossa memória musical que anda superficial. Na tua opinião, é falta de respeito não existir? 
PB - Tenho contado essa história com muita música, brincadeira e diversão, sem texto. O show é dançante e participativo, não é didático apesar de ter muita informação. As pessoas ficam surpresas quando digo que Morena Tropicana não é de Alceu Valença, mas de um baiano maravilhoso chamado Vicente Barreto. As pessoas cantam Não deixe o samba morrer e dizem que é de Alcione, mas essa canção é de Aluísio Silva. São dois baianos apagados, ninguém fala deles.

M - Você vem de uma geração que experimentou todos os ritmos e estilos de nossas raízes brasileiras. Muita coisa mudou no cenário da MPB. Como avalia a música brasileira contemporânea?
PB - Acho o máximo e fico até invejando. Na passagem de som desse show em Juazeiro, todo mundo só comentava sobre a energia do pagodeiro Canário. O cara apareceu na televisão e era uma energia que não tem quem não se envolva. Sei que as pessoas mais puristas, como eu também, gostam muito de João Gilberto e de Chico Buarque. Adoro o sublime da música, agora ninguém deve chegar quando tiver tocando um pagodão ou um arrocha,  tentando atravessar com algo diferente. É complicado, porque é o que as pessoas querem. Se você quer trocar de rádio tudo bem. Não vejo disputa entre os ritmos porque as músicas são muito populares, às vezes hilárias, não dizem nada, às vezes só dão um lepo-lepo e tá tudo certo. Você vai escutar a história de vida dessas pessoas e percebe o quanto sofreram. Não sabem fazer uma coisa com mais conteúdo. O país emburreceu.  Houve um tempo que ofereceu João Gilberto, Caetano, hoje oferece pagode, arrocha e a gente vê claramente isso. Seja ou não um país sem educação e sem cultura,  não quero saber, de vez enquanto eu também saio badalando no pagode.


 M - Você também faz parte de um capítulo dessa história e é referência para vários músicos iniciantes. Como entrou para a música?
PB. Fui menino do interior que sonhava. A gente via aquela serra na frente de casa e eu dizia: acho que um dia eu vou chegar do outro lado da serra e vou fazer alguma coisa. Quando me vi, já estava em Salvador. Lá achava que tinha que cantar de toda maneira, então, toda a brecha que tinha eu estava lá querendo cantar. Foi aí que ganhei o apelido de ‘Boca de Cantor’. Em 1964, foi o ano da ditadura militar. No final de 63 comecei a cantar em festas de baile, impulsionado por um amigo. Ele me levou para ver um baile e esse meu jeito muito alegre conquistou o pessoal da orquestra e comecei a acompanhar o grupo. Às vezes, era barrado na entrada e eu dizia que era diretor de clima da orquestra. Comecei a dar uma canja na orquestra, cantando o gênero mais romântico, músicas italiana, francesa e inglesa. E não parei mais.

M - Como conseguiu se oficializar como cantor?
PB. No dia que eu consegui me oficializar como cantor da orquestra foi hilário. As meninas pediram ao cantor oficial da orquestra para cantar uma música. Ele tirou um tom muito alto e quando chegou na segunda parte,  cantou uma frase “Estás perdendo tempo”. As meninas começaram “Cantando, cantando”, daí ele nunca mais cantou e eu fui substituí-lo.

M - E seu ingresso nos Novos Baianos, deve ter sido inesquecível...
PB- Um músico dessa orquestra que eu cantava foi quem me apresentou ao Galvão e ao Moraes Moreira que eram parceiros dele. A gente passou a ser amigos inseparáveis, e fui incentivando para gente fazer uns shows. Fiz uma espécie de catado no comércio para arrumar dinheiro e começamos a comprar as coisas para montar um cenário. O primeiro show dos Novos Baianos a gente chamou de “Desembarque dos bichos depois do dilúvio universal”. Entramos no palco a bordo de um disco voador e foi uma coisa arrebatadora.

M - Como surgiu a marca dos Novos Baianos?
PB- Com a canção Acabou Chorare fomos apresentá-la em um festival de música no ano de 1969, época em que baiano era uma febre. O cara apresentava a carteirinha de procedência e já estava empregado por seu da Bahia. Achavam que era gênio, músico e aí na hora de se apresentar o cara perguntou  nossos nomes. Na hora que foram chamar a gente para cantar alguém gritou: chamem esses novos baianos aí rapaz que esses caras são todos loucos e está na hora deles entrarem”. Ai, o nome pegou. A gente fica feliz porque já se passaram 45 anos e os Novos Baianos estão ai, vivos.

M- Desde o fim do grupo, vieram as investidas na carreira solo de seus integrantes. Pepeu Gomes, Baby e você fizeram discos que venderam e tocaram bem no rádio. Como foi esse desafio para você?
PB- Muitas vezes brinco que o empresário é mais famoso que os caras. A gente individualmente existe, os Novos Baianos mostram isso que você pode ser de um grupo, mas todo mundo pode ser solo também. O meu primeiro disco da carreira solo, Bom de Chinfra e Bom de Amor, é uma produção minha em parceira com Luiz Galvão e Gilberto Gil. Gravei algumas músicas que eram dosNovos Baianos que não tinham sido gravadas ainda, dando continuidade no que eu sempre acreditei. Cada um agregou sua experiência. Depois vieram outros discos com canções conhecidas, mas estourei mesmo nas rádios com Rock Mary, do disco Valeu, de 1984.

M- E o olhar atravessado da censura para você?
PB- Naquele tempo era muito comum a gente driblar a censura. Os Novos Baianos faziam muito isso até porque as pessoas não entendiam direito as letras. Falávamos da loucura atual que estava acontecendo. A gente não era drogado, porém, viveu em um tempo em que a juventude confiou na gente e tivemos que corresponder os anseios dela. Driblamos e escapamos de várias formas das garras dos militares, mas fizemos música com amor e criatividade.

M - Depois de um bom tempo fora da cena musical, Baby está de volta à cena e tem seu filho Betão no elenco da banda. Como se sente em ver seu herdeiro fazendo música com a parceira dos Novos Baianos?
PB - O Betão é um grande músico. Quando você acerta nos filhos é a maior loteria que você pode ganhar na vida. Ele também trabalha com Arnaldo Antunes há anos e esta em projetos premiados. Olha, os filhos dão continuidade a esse trabalho da gente porque eles também gostaram muito do que eles viveram, pois nasceram no meio dos Novos Baianos.

M- No passado, Chico Buarque e outros artistas de sua geração faziam muita música ligada à questão política. Havia um engajamento que tomou outro rumo culminando agora com a questão das mobilizações. Qual sua leitura sobre isso?
PB - O Cazuza já falou: “Ideologia eu quero uma pra viver”. As épocas e cenários são diferentes. Naquela época o jovem se interessou pela repressão. São dois momentos totalmente diferentes. A gente  vê agora essa contestação popular  de querer mudar. Isso é o que vai gerar movimento em todas as áreas, pois foi assim no passado.  Nos anos 60, o Brasil mudou 500 anos em cinco justamente por que a gente teve a coragem de mudar, de puxar a toalha da mesa, derrubar tudo e dizer: olha, não é assim, o momento é muito propício para a gente  dar um freio de arrumação.

M- Finalmente, diante da discussão pedagógica sobre o que é música de qualidade, você aposta no projeto de Ensino de Música na escola que já é lei?
PB - Acho fundamental porque o Brasil é um país completamente musical com uma herança muito bonita de negro, portugueses e índios. Quando era menino eu já tirava som do meu corpo. O negro foi fundamental pelo gingado que nos legou. Tem que prevalecer essa coisa natural que está na gente. Nada melhor que levar para escola toda essa musicalidade, essa energia e a vocação natural que o brasileiro tem para isso. O país era muito fértil em música na ditadura militar, as pessoas faziam músicas em protesto, o movimento tropicalista era todo envolvido, enfim, é uma história que precisa ser contada para esses meninos. Só essa geração pode se apropriar dessa brasilidade que existe e quem sabe ai aparecer mais adiante novos talentos. [M]