Futebol não é o bode expiatório, o vilão é outro

. 12 junho 2014

O jornalista pernambucano Geneton Morais, citou uma frase anônima no livro Grandes Reportagens, que expressa  o significado do futebol para os brasileiros. “O futebol é a coisa mais importante das coisas menos importantes“.  De fato, o “esporte bretão”, como afirmavam os antigos cronistas esportivos, não muda as condições sociais do povo. A vida das pessoas volta à sua normalidade após a conquista dos campeonatos, inclusive depois dos mundiais. Triunfando ou fracassando, a labuta diária pela sobrevivência recomeça na segunda-feira, dura, desafiadora. 

Como ocorre com a metáfora do carnaval, o folião e a foliã são majestades por quatro dias, na utopia efêmera da folia de Momo e depois da quarta-feira de cinza, reis e rainhas na plenitude do poder lúdico e da “liberdade “, acordam numa quinta feira, vislumbrando o “big brother” (Grande Irmão, do livro 1984, de George Orwell, escrito em 1948), com suas imposições, coerções, regras, sermões torturadores da alma alheia, que hierarquizam e monopolizam as relações sociais, “roubando” do ser o que ele tem de mais precioso em sua vida incerta e curta que é o livre arbítrio e o direito de ir e vir. O esporte mais praticado no mundo é, para o Brasil, sinônimo de autoestima, de positividade e do país criativo e alegre que, ama a vida não o “bode expiatório”. O vilão é outro.

A Seleção Campeã de 58: Gênios como Didi, Garrincha e Pelé
O futebol neste início de junho no Brasil agenda tudo. Os encontros, as viagens, os planejamentos das instituições e da iniciativa privada, a escola, as resoluções dos poderes constituídos, a política, as programações dos artistas e da televisão. Para os jornalistas é a pauta-padrão, no jargão jornalístico a “Agenda Setting”. Nas ruas um reflexo do evento: bandeiras nos carros e no topo dos edifícios, em souvenirs das lojas, nos trabalhos de escola das crianças, nas ornamentações dos espaços públicos e privados. É a Copa, quebrando a rotina e a praxe protocolar. É a festa da bola, mudando o ritmo da urbe e o humor dos viventes. 

Mas como dizia “o poeta do povo”, “essa copa tá diferente”! Não, o povo não deixou de amar o futebol, nem despreza a “seleção canarinha”. Os amantes do futebol querem gritar, cantar em verso e prosa a arte de Neymar e seus companheiros, escrevendo no gramado “padrão-FIFA” mais um capítulo de uma história encantada, que deu ao Brasil a condição e a fama de futebol mágico, de artistas da bola. Contudo, “a pátria de chuteiras” do Nelson Rodrigues já esteve mais engajada, mas o sentimento pela seleção continua forte. Não há divórcio, talvez uma birra.

Jamais esqueço a frase do técnico do Liverpool da Inglaterra na conquista do título mundial do clube rubro-negro em Tokio em 1981, após a vitória brasileira, capitaneada por Zico, Adílio e Junior por três a zero. “Esse time não joga futebol, esse time baila, isso deveria ser proibido”. Ao ouvir depoimentos assim, não há como não pensar em Garrincha, o anti-herói do futebol com suas pernas enviesadas “entortando os gringos” em duas copas; na “doce malandragem de Romário”, iludindo seus marcadores assombrados em 1994, nas alegorias de Pelé, marcando seus gols antológicos como um menino no campinho de várzea, brincando com a sua velha bola de meia; nos dribles serelepes e moleque de Neymar nos campos do futebol “científico da Pós-Modernidade”. Eis o legado romântico de Garrincha, de Leônidas da Silva, no DNA brasileiro do Terceiro Milênio. O ex-“garoto da Vila” é aquela alma que se julgava quase perdida.

Navegando numa rede social, vi uma fotografia alterada da Copa do Mundo da Suécia de 1958, graças a tecnologia que permite pintá-las de azul, já que as fotografias da época eram em preto e branco,  quando conquistamos o primeiro título mundial: estavam lá, pousando para a foto oficial após a conquista do título daquele ano: Gilmar, Djalma Santos, Beline, Zózimo e Nilton Santos. Zito e Didi, Garrincha, Vavá, Pelé e Zagalo. Não havia como não se emocionar: o ar de confiança daquele “esquadrão pioneiro”. Depois de tantas decepções como a de 1950, quando o país se transformou num “vale de lágrimas”, após a derrocada para o Uruguai.


Tivemos que aprender com a dor, o equívoco de achar que a vitória contra a “Celeste” eram “favas contadas”. Foi o “mal necessário”, aprendemos uma lição valiosa: a partida só termina depois dos 90 minutos e não é vencida de véspera. Essa situação se repetiu em 1982, por excesso de confiança da máquina de Zico, Falcão, Sócrates e Junior, não por arrogância. Aquele time lendário de 58, finalmente conquistava a taça Jules Rimet, mais do que isso, resgatava um orgulho ferido não somente pelo “Maracazo” de 50, mas por um complexo de derrotismo, que estava além do fiasco futebolístico, mas se espraiava pela estrutura social, desigual, injusta e segregadora que tanto angustiava.

Era preciso ‘virar a página’ e fazer como Cezar, veni, vidi e vici (vim, ví e venci) e o time verde e amarelo (na final vestiu azul) cumpriu o propósito, venceu e convenceu. O país vivia a era entusiástica de Juscelino Kubitschek, que ansiava crescer cinqüenta  anos em cinco. O triunfo não mudou a vida do povo do ponto de vista de suas mazelas e atraso, mas, definitivamente “inscreveu o gigante adormecido no mapa-mundi”, mais que a Bossa Nova ou o café. Há quem diga, “com algum exagero”, que esse feito é maior do que a própria “descoberta de Cabral”. 

O jornalista espanhol Juan Arias, do El Paíz, revelou, em entrevista recente no Sport TV, que o melhor do Brasil é o seu povo, diferente de qualquer exemplo no mundo. “Um povo que insiste em ser feliz, mesmo diante da negação de um mundo hegemônico que não quer aceitar isso”, enfatizou. O periodista citou uma cena presenciada no Rio de Janeiro, em que uma senhora branca de classe média, questionou o fato de uma senhora negra está escolhendo iogurtes numa prateleira de um supermercado. O pior do Brasil  para Arias, seria a fragilidade de suas instituições. É neste ponto que quero  evidenciar: a postura “diferente” do povo é um sinal positivo de que as preocupações de “senso comum” hoje não são apenas com futebol e carnaval como sempre se apregoou, mas há um despertar do senso crítico e não havia evento e ocasião mais propícios para o povo manifestar o seu “sinal de alerta” em relação ao nosso quadro social histórico perverso, como a Copa do Mundo da FIFA.

O povo sente um “mal-estar”, que não é de agora, ele se arrasta com uma imensa onda na direção do Continente. As mensagens enviadas não são para os jogadores, são muito mais para os cartolas, não são para a comissão técnica, são para os burocratas e representações institucionais, especialmente dos três poderes: Judiciário, Executivo e Legislativo. Então, culpar o futebol é no mínimo incoerente pelo comportamento popular, mas é preciso dizer quando se gastam milhões de recursos públicos, além do orçamento para construir estádios de futebol e melhorar a infraestrutura do país para receber a Copa, em detrimento da carência do país no setor de saúde pública e educação e segurança, não há como não associar o evento à realidade que deixa um país dividido entre os que querem o mundial de futebol e os  que desejam celebrar a festa do esporte. 

O povo quer ser melhor representado, quer ser respeitado como cidadão, quer que a sua nação lhe proteja, respeite os interesses do cidadão. E esse recado não é só para o Brasil, mas para o mundo. Arias enfatizou que o mundial de futebol nunca mais será o mesmo e deve isso ao país sul americano. Num país cujas autoridades toleram e são impotentes para evitar o número absurdo de 50 mil mortes por ano (dados da OMS), resultante da violência, uma guerra civil a cada ano, é certamente um exemplo negativo que necessita de uma transformação social sem precedentes na história e a população reclama e denuncia isso, querendo uma resposta assertiva do Estado e dos outros poderes.

O futebol brasileiro é uma metáfora da mestiçagem que se forjou neste país, numa trajetória muito violenta que repercute ainda de forma contraditória no país, cujo apartheid  é flagrante. O sucesso do futebol nacional deve muito a essa mistura, concedendo a nossa forma de jogar um estilo singular. Se há um setor que é fator de democratização e inclusão é o futebol, embora nem sempre tenha sido assim, pois, até a década de 1940, negros e mulatos eram alijados dos grandes clubes. Os exemplos do Fluminense e do Vasco são clássicos: o primeiro instigava o “branqueamento” dos seus“scratchs”( equipes de futebol fora de série), usando “pó de arroz” no corpo, o segundo revolucionava os hábitos segregadores, formando um time vencedor repleto de mestiços e de negros, quebrando a prática usual de apartação.

A despeito dos casos de racismo contra jogadores de futebol negros pelo mundo, é preciso dizer que, na galeria dos maiores craques do mundo em todos os tempos, estão lá muitos negros e mulatos, dentre eles Pelé, Eusébio, Ronaldinho Gaúcho, Henry, Samuel Etoó, Drogbá, Rivaldo, entre tantos outros.  A simbologia da autoestima e da beleza do futebol pode ser cristalizada na atitude do Mestre e “filósofo do futebol”, Waldir de Morais, o Didi, autor do famoso chute “folha seca”, usando a famosa técnica dos “três dedos” ao bater na bola, fazendo com que a esfera  sofresse  um efeito parábola, subindo e descendo em pleno ar para enganar o goleiro aturdido.  O meia do Botafogo disse uma vez: “treino é treino, jogo é jogo” e ele próprio mostrou isso com sua personalidade confiante.

No jogo difícil contra a Espanha na Copa de 1962, o Brasil tomou o primeiro gol, numa jogada rápida da “fúria “ e o maestro do time brasileiro, num ato desassombrado, vai até o gol, pega a bola, põe a  debaixo do braço e de cabeça erguida caminha firme na direção do centro de campo.  Não houve necessidade de palavras. O gesto do líder bastou. O resultado é que o Brasil virou o jogo para dois a um e avançou, atropelando todos os adversários até conquistar o Bi-campeonato Mundial no Chile.

Oxalá, que todos os brasileiros pudessem imitá-lo, andando altaneiros, confiantes, satisfeitos com suas instituições e seus líderes marcando belos gols de justiça social. É que infelizmente, de todas as instituições desse país, a mais confiável é a que pode cumprir  um outro tipo de missão, que atua mais no campo da arte: a  de jogar futebol. O resto da história, o mundo conhece muito bem.

Por Jota Menezes é jornalista, professor de história, escritor e Mestrando em Educação, Cultura e Território Semiárido.