Carroças de tração animal atravessam um século de história em Petrolina

. 18 janeiro 2015
Redação MultiCiência
Uma das cidades que mais cresce no interior do Nordeste, Petrolina é destaque junto com outros municípios pela produção de vinhos no Vale do São Francisco. Com cerca de 300 mil habitantes, segundo dados do IBGE, carrega a fama de vender a melhor carne de bode da região no popular restaurante Bodódromo. No setor automobilístico, esbanja carros de luxo e conta com concessionárias de importados. O trânsito é municipalizado e ordenado pela Empresa Petrolinense de Trânsito e Transportes Coletivos (EPTTC) que tenta ordenar e fazer cumprir as leis enquadrando, inclusive os veículos de tração animal.


Em setembro do ano passado, a Prefeitura deu início à campanha de emplacamento de mais 400 carroças que agora têm direito a cadastramento e alvará de circulação. A meta do órgão é ter um melhor controle das carroças em trânsito na área urbana e rural, além do seu disciplinamento. Uns carroceiros aprovaram, outros reclamam da medida. Independente de todo esse processo, por uma questão cultural as carroças já fazem parte da cultura e da história do município há mais de um século. 

Há carroceiros que se comportam como profissionais reconhecidos na comunidade. Todos são unânimes na luta em defesa de seus animais que, muita vezes, são maltratados nas ruas quando estão abandonados. Além disso, apontam que se tornam um membro da família e ajuda no sustento doméstico. Entre os carroceiros da área urbana, João Avelar de Souza, 65, se considera um dos mais antigos na profissão. Marchante, ele conta que desde os 15 anos, órfão de pai, passou a ter contato com as carroças para ajudar a mãe e irmãos. Nessa época, atravessava muito a ponte para Juazeiro (BA) a fim de fazer entrega de produtos e arrumar fretes no sentido contrário. Sua burra sem nome tem 14 anos e ele a cuida com muito esmero para evitar que ele chegue a ser espancada nas ruas ou se envolva em acidentes.

“Está cada dia mais difícil andar no trânsito  porque os motoristas acham que estamos atrapalhando  e acabam xingando de todo jeito. Os piores são os motoqueiros.  Mas há gente educada como um motorista certa vez parou o carro atrás e pediu que seguisse devagar sem ter de bater o chicote”, conta  seu João que, quando não está transportando as carnes para a feira da Areia Branca, usa a carroça para fazer fretes.

Só reclama que sua burra dá muito trabalho porque “quer comer tudo que encontra pela frente, é muito faminta”. Ele se diz defensor dos animais, evita maltratá-la e faz de tudo para ela coma capim e milho que, segundo ele, tem grandes nutrientes. Sobre o emplacamento de sua carroça (CDR 7385), garante que já fez por uma questão do controle e organização no trânsito. “Mas a falta de respeito nas ruas é muito grande”.

Desde criança Jailson Lima, 37, aprendeu a trabalhar em roça com os pais e o primeiro veículo que utilizou foi uma carroça. Hoje ele sustenta a mãe e uma sobrinha com duas burras que ele alterna nos serviços. Uma se chama Morena e a outra Lagartixa.   É com elas que de segunda a sábado, alternadamente, presta serviço para uma empresa de material de construção, fazendo entregas nos bairros mais próximos do estabelecimento. No final do mês, recebe um salário pelos serviços. Já nos feriados e domingos, faz bico por conta própria juntando entulhos e fazendo pequenas mudanças, cada uma por ate R$ 30.

“Quando uma está trabalhando, a outra descansa, assim, a gente cuida melhor de cada animal, sem judiar no calor forte do sertão”, garante Jailson.  A burra Lagartixa ele comprou mais recentemente por R$ 600. As duas comem farelo de trigo e milho pisado. Sua carroça ainda não foi emplacada, mas estão na fila da EPTTC aguardando o chamado.

Rogerio de Souza, 29, é um apaixonado por sua rotina sobre a carroça. Para ele, ser carroceiro é mais que uma profissão digna e que ajuda muita gente pobre que não tem como pagar nenhum frete de caminhonete. Sua burra se chama Coroa e foi comprada também por R$ 600. Ele diz que não pode viver sem ela porque tem seis filhos de três mulheres para sustentar.

O animal já lhe deu um susto certa vez e quase perdeu a vida. “Coroa estava comendo capim em um terreno baldio quando um marginal empurrou uma faca arrancando os músculos do peitoral. Ela sofreu muito até chorei. Queriam que eu a sacrificasse, mas cuidei escondido com plantas e remédio. Gastei muito e consegui salvá-la”, lembra  Rogério, enquanto transportava uma mobília do bairro João de Deus para o Fernando Idalino.  Ele garante que, mesmo com dificuldades, o que ganha dá para colocar a comida na mesa.

O AMOR DE DORALICE - Nilton Sergio  Alves, 32, e Jaqueline Santos Severo, 26, estão juntos há um bom tempo. Biscateiros, adotaram há sete meses uma  burra que o primo dele queria vender. Compraram o animal por R$ 300 coma a carroça. “Eu trabalhava como pedreiro. Fiquei arado e ai meu primo passou a bichinha pra frente com tudo. Comprei e tem sido pra trabalhar, mas ela já é querida como uma pessoa da família”, afirma Nilton.

Antes sem nome de “batismo”, o casal foi unânime em batizar a burra de Doralice. Os dois não escondem o amor que tem pelo animal e fazem questão de dizer que ela (Doralice) é amorosa com todos da família, incluindo dois sobrinhos que eles criam em casa.  De acordo com os donos, Doralice se comunica com gestos e é bem tratada. Todos os dias toma banho com sabão e come ração apropriada. Qando a bacia esta fazia e a fome se anuncia, Doralice bate com a cabeça na porta da pequena casa onde eles moram no bairro Ouro Preto.

“A maior felicidade dela é se banhar numa bica de água fria. Quando a gente a leva pra beira do rio São Francisco, ela reclama, tem medo de se aproximar da água”, diz Jaqueline. Doralice é mesmo sentimental. Certa vez, conta  Nilton, estava em um bar da periferia completamente embriagado e sozinho com o animal. Ele deitou na carroça e ordenou que Doralice seguisse para casa. “Era bem longe e dormi, só sei que acordei em casa, não sei como ela acertou o caminho e não bateu em nada. Acho que era domingo e o trânsito estava tranquilo ”, completa Nilton.