A midiatização e as transformações das dinâmicas socioculturais

Multiciência 20 fevereiro 2017
Os estudos de midiatização começaram com pesquisadores das Ciências Sociais analisando a influência da mídia na vida social. No contexto latino-americano, Jesús Martín-Barbero, García Canclini e Guilherme Orozco ampliaram as pesquisas a partir do conceito de mediações culturais e a relação da comunicação centralizada na cultura. No Brasil, pesquisadores como o professor da Universidade de São Paulo (USP), Eneus Trindade, se dedica a estudar a midiatização em um paralelo com mediações culturais com ênfase nos estudos sobre as relações de consumo.

Nessa entrevista a ComSertões, o professor analisa como as mídias estão presentes na vida cotidiana e como essa presença transforma as dinâmicas socioculturais. Ele discute também a tendência da publicidade em disseminar temas sociais com combate à opressão das minorias. Para Eneus, o consumo pode ser um lugar de inclusão, de tolerância e de respeito à diversidade na sociedade.

Com sólida formação acadêmica em Comunicação pela USP, Eneus é coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) e defende que as universidades públicas invistam na institucionalização da pesquisa, incentivando parceria entre centros de excelências e universidades de todo país. O professor participa do Programa de Pós-Graduação Interinstitucional em Comunicação (Dinter), parceria da USP e a Universidade do Estado da Bahia (UNEB), e tem visitado a região do Vale do São Francisco para socializar os seus estudos com doutorandos em comunicação, estudantes e professores de Jornalismo em Multimeios e Pedagogia, da Universidade do Estado da Bahia, campus Juazeiro.
Foto: Divulgação/NAC-Uneb




MultiCiência: Professor, seus estudos estão relacionados ao tema midiatização e consumo. Como o conceito de midiatização tem sido analisado?
Eneus Trindade (ET): Estudo a midiatização em um paralelo com mediações culturais com destaque às mediações comunicacionais. A midiatização é o operador ou um mecanismo de difusão desses aspectos da cultura via comunicação. A partir disso, entende-se que o consumo é alterado pela midiatização de marcas, que funcionam com um elemento da mediação cultural para identidade do indivíduo. Por isso, a relação mediações culturais e midiatização, porque a marca operacionaliza uma dimensão de consumo comunicativo e, ao mesmo tempo, materializa uma série de mediações culturais e comunicacionais relacionadas à identidade do sujeito.

MultiCiência: Quais mudanças surgiram nos estudos de midiatização da sua origem para os dias atuais?
Eneus Trindade: A midiatização é uma tendência fora do contexto brasileiro hegemonicamente, não que não exista no Brasil, existem pesquisadores brasileiros trabalhando esse conceito. A midiatização é um conceito contemporâneo das Ciências Sociais nos estudos de mídia que procuram estudar a influência da mídia na vida social e nas transformações sociais. Nos estudos de tradição latino-americana, existem as mediações culturais propostas por autores como Martin Barbero, García Canclini e Guilherme Orosco que trabalham perspectivas de entendimento da comunicação na centralidade da cultura. Essa mediação reflete uma série de mediações culturais e que explicam a constituição do indivíduo e o modo como as pessoas se apropriam das realidades. É interessante entender que a midiatização é um conceito amplo da presença da mídia na transformação social, mas as mediações culturais procuram explicar de forma mais detalhada esse conceito e a tradição latino-americana é mais adequada para nós.

MultiCiência: O senhor tem realizado pesquisas relacionadas ao consumo e ao padrão alimentar. É possível comprovar mudanças de hábitos de consumo a partir da influencia da mídia?
Eneus Trindade: Quando estudamos essa questão dos alimentos e das práticas alimentares, queríamos identificar  em que medida as tendências se manifestavam como uma interferência na construção do sentido das marcas para o estabelecimento de vínculo, a partir de tendências como conveniência, facilidade, prazer, saúde, ética e sustentabilidade. Procuramos entender o que é que acontece com essas tendências e percebemos que elas se apropriam, às vezes combinando mais de uma delas.  Determina marca se apropria do discurso de saúde, mas a prática alimentar não é adequada, não é saudável. Fica só na prática discursiva da marca. Por outro lado, as pessoas querem ser sustentáveis e querem ser saudáveis, mas consomem produtos industrializados e produtos processados.

MultiCiência: Além da questão do consumo, como o tema midiatização tem estimulado novos estudos científicos e pesquisas universitárias?
Eneus Trindade: Com uma perspectiva de valorizar o sujeito receptor e a sua relação de usos e consumos midiáticos, isso tem sido muito importante e fundamental no empreendimento da midiatização e no entendimento da comunicação como um processo sociocultural. Essa contribuição cria uma preocupação com objetos da comunicação e não só estudar comunicação relacionada a qualquer coisa perdendo de vista o objeto comunicacional. A grande contribuição dessa perspectiva teórica é tentar entender um lugar possível de compreensão do objeto comunicacional na sua presença na vida social.

MultiCiência: Como podemos perceber a influência da midiatização no cotidiano?
Eneus Trindade: É relevante perceber como as mídias estão presentes na vida cotidiana e como essa presença transforma as dinâmicas socioculturais. Essa é uma característica do conceito de midiatização entender a presença da mídia e como essa presença transforma o sentido da existência. Um exemplo é a interação interpessoal que acontecia por telefone e hoje é substituída pelo whatsapp com os smartphones. Quase ninguém mais telefona, então o smartphone quase não é usado para essa perspectiva e sim para a interação através de aplicativos. Isso é uma transformação da cultura de relações interpessoais e essa subutilização do telefone transforma os modos de interação das pessoas.

MultiCiência: Muitas empresas têm construído campanhas midiáticas com conteúdos alusivos a temáticas sociais, como homofobia, racismo, pautando muitas vezes discussões na rede. Como entender essas tendências no mercado publicitário?
Eneus Trindade: É preciso estudar cada plataforma para entender isso, porque as marcas têm uma proposta de vinculação com os consumidores. A empresa tem que estabelecer um vínculo de credibilidade e de confiança. Não adianta ser um vínculo afetivo, deve ser um vínculo de credibilidade e confiança com o consumidor. Esse tipo de credibilidade e de confiança tem que permear todas as plataformas, só que essas plataformas não agem na mesma intensidade. No twitter são 140 caracteres, ou seja, uma perspectiva de interação com limite. A página do facebook pode ter outras características, então dependendo da plataforma posso ter a possibilidade de criar esse vínculo com maior ou menor intensidade em função dos artifícios técnicos que a plataforma permite na interação.

MultiCiência: Como entender esse tipo de consumo?
Eneus Trindade: É um consumo responsável, ético e que busca lutar para agregar o consumo de mercadorias a uma postura civilizatória que leva emancipação e a inclusão social. É lógico que essa inclusão social pode ser associada ao consumo, a aquisição de produtos passa ser a porta de entrada de aceitação do indivíduo. Logo, a interpretação negativa que a gente pode ter dessas estratégias é que eu só vou aceitar o negro, eu só vou aceitar o homossexual se ele for consumidor. Por outro lado, consumir é uma condição da existência humana, a gente nasce para consumir. Então, não podemos ser tão extremistas em dizer que o consumo não é um lugar de inclusão. Mas junto com esse lugar de inclusão você tem que ter os aspectos de tolerância e de respeito à diversidade na sociedade.

MultiCiência: Ao mesmo tempo em que as empresas investem em campanhas sociais, muitas peças publicitárias ainda reproduzem aquele modelo de associação da mulher como objeto de desejo sexual, como campanhas de bebidas, algumas marcas de roupas. Como publicitário e pesquisador da área o senhor identifica implicações éticas nesse tipo de propaganda?
Eneus Trindade: Isso é um processo civilizatório, enquanto houver preconceito existente na sociedade existirá a publicidade que revela os estereótipos do preconceito, à medida que a publicidade e a sociedade vão ganhando outro estatuto de processo civilizatório isso pode ser combatido. Antigamente, o cigarro era recomendado para atenuar o estresse das pessoas, hoje a propagando do cigarro é proibida. No futuro, todas essas questões que consideramos antiéticas, mas que vem acontecendo estarão extintas num lugar folclórico de lembrança de uma sociedade em uma outra etapa do processo civilizatório. É preciso ver a evolução civilizatória da sociedade e o que cabe e não cabe nessa sociedade. De repente, o movimento das mulheres vai inviabilizar a representação delas de um modo machista no futuro. Agora, isso ainda não acontece porque existe ainda a presença da cultura machista na mídia. Enquanto houver essa presença, haverá quem faça publicidade nesses moldes.

MultiCiência: O senhor estudou na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e é professor da USP, atualmente também participa do Dinter em Comunicação, parceria entre a UNEB e USP, como o senhor analisa o crescimento da pesquisa nas universidades da região nordeste?
Eneus Trindade: Houve uma grande evolução. Quando eu saí para fazer o mestrado e o doutorado na USP, não existia pesquisa na região apenas a graduação e hoje as universidades públicas do Nordeste estão preocupadas com a pesquisa e estão surgindo programas de pós-graduação. A UFPE onde estudei não tinha mestrado e doutorado em Comunicação e hoje já tem um programa na área. Se me formasse hoje, não sairia de Recife. De um modo geral, as pesquisas refletem temas importantes para o desenvolvimento das regiões, portanto não há como comparar com as pesquisas de São Paulo. Os assuntos discutidos em Recife, discutidos em Juazeiro são pertinentes à região. Não posso dizer que a pesquisa realizada em São Paulo é superior a de outras regiões. Talvez as universidades de São Paulo tenham uma tradição, tenham uma prática de pesquisa consolidada, mais madura e isso coloque institucionalmente a pesquisa em comunicação em um patamar superior. Mas percebo grandes avanços, tenho grandes colegas interlocutores e não vejo com demérito as abordagens temáticas ou o método. O que eu acho é que o Nordeste precisa lutar, cada vez mais, para institucionalizar a pesquisa no ensino superior sobretudo as universidades públicas.

MultiCiência: A região nordeste tem sido pautada pela mídia através de novelas como Velho Chico e filmes que são produzidos na região, como esse processo de midiatização contribui para construir novas referências sobre o Nordeste, que não seja a de uma visão estigmatizada?
Eneus Trindade: O Nordeste vai ganhando a sua midiatização a partir de seus conflitos locais na medida em que a região tem aspectos que correspondem à dimensão do poder instituído, como também possuem aspectos das condições de desigualdade, da miséria, pobreza e esquecimento de uma população que vive o paradoxo de ter o desenvolvimento no agronegócio, na produção de energia do país e, ao mesmo tempo, tem uma parte da população esquecida ou alijada desse processo. A mídia ajuda a problematizar isso, acho que inclusive as representações do Rio São Francisco e da sua região são representações que traduzem na medida do possível essas polêmicas muito melhor do que a representação hegemônica que se tem da politica na mídia.

MultiCiência: O Senhor avalia que houve mudanças nesse discurso hegemônico?
Eneus Trindade: Existe um imaginário do nordeste já consolidado, mas os produtos midiáticos têm mostrado que houve uma mudança. Por exemplo, o filme cearense Boi Neon,  do diretor Gabriel Mascaro,  trabalha uma perspectiva do nordestino que não quer migrar, mas que quer viver na região, porque houve mudanças. Há um novo horizonte de representação das mídias sobre o Nordeste que está ganhando uma certa amplificação e mostra uma outra estética uma outra lógica, o que é importante e legítimo. Talvez essa questão hegemônica do Nordeste como lugar pobre permaneça em um grande imaginário coletivo porque essas produções são em menor frequência do que outras, mas por outro lado já existe uma produção constante ainda que menor comparado a produções de lógica hegemônica. Há produções que demonstram que existe vida cultural e negócios prósperos no nordeste. Na região do São Francisco, existe uma representação que, para mim, corresponde ao justo, ainda que às vezes recaía em alguns aspectos, mas a gente também não tem como fugir disso totalmente.

Essa entrevista foi publicada na Revista ComSertões, da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Disponível em: http://www.revistas.uneb.br/index.php/comsertoes/issue/view/175