Em mais uma manhã quente na cidade de Juazeiro,
ainda meio sonolento, envolto por mais de 40.000 mil livros e tendo como
refrigério para a carne o frio artificial do ar-condicionado do acervo,
vasculho as páginas empoeiradas de um jornal em busca de informações sobre a
construção da Barragem de Sobradinho e me deparo com algo que rapidamente
prende a minha atenção: cartas sobre festas de despedida às cidades que seriam
inundadas pelas águas da barragem. As cartas narram com poesia e riqueza de
detalhes o sentimento de perda que permeou as festas nos municípios de Santana,
Sento-Sé e Casa Nova, o sentimento de saudade dos ribeirinhos que precisavam
lidar com o progresso, com o novo, com o desconhecido.
(Arquivo)
O nome do jornal é Caminhar Juntos, boletim informativo da Diocese de Juazeiro idealizado
pelo bispo, Dom José Rodrigues, cujo acervo – no qual aprendi a despertar do
sono da manhã – tem nome em sua homenagem. O bispo reuniu uma coleção
inestimável de livros, revistas e jornais que buscavam estimular uma consciência
crítica dos ribeirinhos e que, hoje, pode ser encontrada na Biblioteca da
Universidade do Estado da Bahia, em Juazeiro.
(Arquivo)
Com o intuito de trazer aos diocesanos do interior
"notícias da cidade, e aos da cidade notícias do interior", o boletim
teve sua primeira edição no mês de março de 1976 e foi um meio de organização
coletiva e de denúncia social ao voltar seu olhar para a situação dos
ribeirinhos que sofriam com a intensa seca no ano de 1976, os conflitos entre
posseiros e grileiros, a ação de empresas estatais que desrespeitavam os
direitos da pessoa humana, como Companhia de Desenvolvimento do Vale do São
Francisco (CODEVASF) e Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF) e os
impactos sociais e ambientais da barragem de Sobradinho que provocaria o êxodo
de mais de 70 mil pessoas de seus espaços de convivência.
Nas páginas mimeografadas do boletim, em meio aos
informes, transcrições de palestras e eventos religiosos, surgem notícias,
textos e as cartas que demonstram o sentimento dos ribeirinhos em um contexto
conturbado que exigia enfrentamento e a consciência crítica de si como
instrumento de luta e mobilização. As cartas sobre as festas de despedida
encontradas no jornal são um testemunho do sentimento de pertencimento e de
saudade dos moradores que ao deixarem seus espaços de afetividade davam adeus
às "ruas feias ... mas que amamos, porque nos viram nascer."
(Arquivo)
"A coisa mais difícil é dizer ADEUS!", diz
a professora Madalena Sousa Lima, ao se despedir do povoado de Santana do
Sobrado. "Hoje estamos vivendo esta experiência, dizendo adeus a tudo
aquilo que não pode acompanhar-nos... Aos umbuzeiros que muitas vezes
alimentaram as famílias pobres; aos juazeiros que serviram de pasto para as
ovelhas; às caçadas de ribanças; às várzeas, onde aprendemos a andar de
bicicleta".
A filosofia contemporânea de Peter Sloterdijk pode
dar sentido ao que foi descrito acima: "a morte das esferas". O autor
entende esfera como “a rotundidade fechada, dotada de um interior
compartilhado, que os homens habitam enquanto tem sucesso em se tornar homens”.
Nesse sentido, as cidades inundadas eram esferas, nas quais seus habitantes se
desenvolviam e relacionavam subjetivamente no espaço físico em meio aos
umbuzeiros, juazeiros, aos animais junto com os seus familiares e vizinhos.
No entanto, esferas são instáveis, para Sloterdijk,
elas "compartilham com a felicidade e o cristal os riscos inerentes a tudo
que se quebra com facilidade." As esferas explodem, são rompidas por
aquilo que lhe é estrangeiro e exterior. Ao serem invadidas por interesses fora
de seu espaço interior, as cidades citadas nas cartas tiveram o fim de seu
mundo, de seus espaços de sociabilidade, morte de um território que não era
apenas físico, era também simbólico e subjetivo. Como enfrentar o fim desses
mundos? Como lidar com a morte das esferas?
(Arquivo)
O padre, João Molnar, na carta de despedida da antiga
Casa Nova, diz que "a morte não é o fim. É transformação de uma vida
melhor." Pede aos diocesanos que não tenham espírito de "resignação
pessimista." Já na carta de despedida de Sento-Sé, Dom José Rodrigues,
aponta que "Caminhar é deixar para trás - pessoas, coisas, paisagens.” Os
líderes diocesanos entenderam que, naquele momento, era preciso seguir em
frente por mais dolorosa que pudesse ser a destruição de uma esfera, porém os
moradores não poderiam deixar-se dominar por um espírito de medo e de pavor.
A professora Madalena Souza Lima preconizou a
permanência dessa esfera ao declarar que “levaremos na mente e no coração as
recordações que nunca serão apagadas, a não ser pela morte. Vão no nosso corpo
as marcas desta terra que nos criou”. Peter Sloterdijk vai mais além ao dizer
que "a experiência histórica e humana testemunha, entretanto, que as
esferas podem ainda subsistir mesmo após a separação pela morte, e que o que
foi perdido consegue permanecer presente nas memórias como monumento, fantasma,
missão, saber." Dessa forma, as cidades inundadas não foram perdidas de
todo, muito menos apagadas, enquanto houver memória, elas persistem como –
usando um termo da historiadora Marialva Barbosa - vestígios, restos do passado
que chegam até o presente e, através desses vestígios, é possível gerar
interpretações e produzir novas significações. Assim, a morte de uma esfera não
é o fim de tudo.
Texto: Jônatas Pereira, estudante de Jornalismo em Multimeios, UNEB, e pesquisador do projeto Tempo e História da Imprensa de Juazeiro (BA) e Petrolina (PE).
Arquivo pessoal: André Sento Sé
Arquivo pessoal: André Sento Sé
Edição: Moisés Cavalcante