As cidades inundadas pela Barragem de Sobradinho que permanecem como memória

Multiciência 05 julho 2019



Em mais uma manhã quente na cidade de Juazeiro, ainda meio sonolento, envolto por mais de 40.000 mil livros e tendo como refrigério para a carne o frio artificial do ar-condicionado do acervo, vasculho as páginas empoeiradas de um jornal em busca de informações sobre a construção da Barragem de Sobradinho e me deparo com algo que rapidamente prende a minha atenção: cartas sobre festas de despedida às cidades que seriam inundadas pelas águas da barragem. As cartas narram com poesia e riqueza de detalhes o sentimento de perda que permeou as festas nos municípios de Santana, Sento-Sé e Casa Nova, o sentimento de saudade dos ribeirinhos que precisavam lidar com o progresso, com o novo, com o desconhecido.
(Arquivo)
O nome do jornal é Caminhar Juntos, boletim informativo da Diocese de Juazeiro idealizado pelo bispo, Dom José Rodrigues, cujo acervo – no qual aprendi a despertar do sono da manhã – tem nome em sua homenagem. O bispo reuniu uma coleção inestimável de livros, revistas e jornais que buscavam estimular uma consciência crítica dos ribeirinhos e que, hoje, pode ser encontrada na Biblioteca da Universidade do Estado da Bahia, em Juazeiro.
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Com o intuito de trazer aos diocesanos do interior "notícias da cidade, e aos da cidade notícias do interior", o boletim teve sua primeira edição no mês de março de 1976 e foi um meio de organização coletiva e de denúncia social ao voltar seu olhar para a situação dos ribeirinhos que sofriam com a intensa seca no ano de 1976, os conflitos entre posseiros e grileiros, a ação de empresas estatais que desrespeitavam os direitos da pessoa humana, como Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (CODEVASF) e Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF) e os impactos sociais e ambientais da barragem de Sobradinho que provocaria o êxodo de mais de 70 mil pessoas de seus espaços de convivência.

Nas páginas mimeografadas do boletim, em meio aos informes, transcrições de palestras e eventos religiosos, surgem notícias, textos e as cartas que demonstram o sentimento dos ribeirinhos em um contexto conturbado que exigia enfrentamento e a consciência crítica de si como instrumento de luta e mobilização. As cartas sobre as festas de despedida encontradas no jornal são um testemunho do sentimento de pertencimento e de saudade dos moradores que ao deixarem seus espaços de afetividade davam adeus às "ruas feias ... mas que amamos, porque nos viram nascer." 
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"A coisa mais difícil é dizer ADEUS!", diz a professora Madalena Sousa Lima, ao se despedir do povoado de Santana do Sobrado. "Hoje estamos vivendo esta experiência, dizendo adeus a tudo aquilo que não pode acompanhar-nos... Aos umbuzeiros que muitas vezes alimentaram as famílias pobres; aos juazeiros que serviram de pasto para as ovelhas; às caçadas de ribanças; às várzeas, onde aprendemos a andar de bicicleta".

A filosofia contemporânea de Peter Sloterdijk pode dar sentido ao que foi descrito acima: "a morte das esferas". O autor entende esfera como “a rotundidade fechada, dotada de um interior compartilhado, que os homens habitam enquanto tem sucesso em se tornar homens”. Nesse sentido, as cidades inundadas eram esferas, nas quais seus habitantes se desenvolviam e relacionavam subjetivamente no espaço físico em meio aos umbuzeiros, juazeiros, aos animais junto com os seus familiares e vizinhos.

No entanto, esferas são instáveis, para Sloterdijk, elas "compartilham com a felicidade e o cristal os riscos inerentes a tudo que se quebra com facilidade." As esferas explodem, são rompidas por aquilo que lhe é estrangeiro e exterior. Ao serem invadidas por interesses fora de seu espaço interior, as cidades citadas nas cartas tiveram o fim de seu mundo, de seus espaços de sociabilidade, morte de um território que não era apenas físico, era também simbólico e subjetivo. Como enfrentar o fim desses mundos? Como lidar com a morte das esferas?


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O padre, João Molnar, na carta de despedida da antiga Casa Nova, diz que "a morte não é o fim. É transformação de uma vida melhor." Pede aos diocesanos que não tenham espírito de "resignação pessimista." Já na carta de despedida de Sento-Sé, Dom José Rodrigues, aponta que "Caminhar é deixar para trás - pessoas, coisas, paisagens.” Os líderes diocesanos entenderam que, naquele momento, era preciso seguir em frente por mais dolorosa que pudesse ser a destruição de uma esfera, porém os moradores não poderiam deixar-se dominar por um espírito de medo e de pavor.

A professora Madalena Souza Lima preconizou a permanência dessa esfera ao declarar que “levaremos na mente e no coração as recordações que nunca serão apagadas, a não ser pela morte. Vão no nosso corpo as marcas desta terra que nos criou”. Peter Sloterdijk vai mais além ao dizer que "a experiência histórica e humana testemunha, entretanto, que as esferas podem ainda subsistir mesmo após a separação pela morte, e que o que foi perdido consegue permanecer presente nas memórias como monumento, fantasma, missão, saber." Dessa forma, as cidades inundadas não foram perdidas de todo, muito menos apagadas, enquanto houver memória, elas persistem como – usando um termo da historiadora Marialva Barbosa - vestígios, restos do passado que chegam até o presente e, através desses vestígios, é possível gerar interpretações e produzir novas significações. Assim, a morte de uma esfera não é o fim de tudo.

Texto: Jônatas Pereira, estudante de Jornalismo em Multimeios, UNEB, e pesquisador do projeto Tempo e História da Imprensa de Juazeiro (BA) e Petrolina (PE).
Arquivo pessoal: André Sento Sé
Edição: Moisés Cavalcante