Um estudante, um mito, uma ligação e o insonhável

Multiciência 16 julho 2019



Acossados pelo implacável e vil avançar das horas, quando do período que abarcou a feitura do livro-reportagem-biográfico “Lento Caminhar: Histórias e Canções de Edésio Santos”, o qual fora produzido como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), eu e Edilane Ferreira, companheira e coautora (então graduandos em Jornalismo), deparamo-nos com um imprevisto que atravancaria o ritmo do processo: quem poderia asseverar e comprovar que a amizade entre o biografado e o insigne João Gilberto, por tantas fontes ressaltada, existira? Invariavelmente, o próprio João! 
A partir dessa constatação, iniciou-se uma jornada em busca do intangível, do improvável. E, se houvesse alguém capaz de viabilizar alguma tentativa de contato, esse seria Maurício Dias, cantor e compositor juazeirense com o qual João costumava se encontrar, nas vindas noturnas e silenciosas, de outrora, que fazia à cidade natal. Por aquele, foi-me confidenciado que havia um número do celular pessoal de João pelo qual eles conversavam, vez em nunca, e que, a sete chaves, foi-me repassado. 
Seguindo à risca o que me sugestionara Maurício, e encorajado pelas descrições de Ruy Castro, no livro Chega de Saudade, que atestavam a naturalidade de João para trocar o dia pela noite, habituei-me à prática ritualística de, antes do sono, discar os nove números da inesquecível combinação. E assim foram transcorrendo os dias e as madrugadas, nas quais, religiosa e mecanicamente, eu imergia no ato de ligar, numa fusão confusa de esperança e descrença, confiante no desfecho impossível, todavia, não lograva senão o quedar da fé numa resposta que emanaria d´outro lado do Rio.  
Logo chegara o último dia para envio dos escritos e, como antevisto, não houve qualquer contato com João. Teríamos de readaptar as construções narrativas à retirada do mote norteador da obra, uma vez que não havia documentos com as mínimas provas de que precisávamos. O relógio, retumbante, marcava 15h, prazo limite para envio do livro à orientadora, e eu, entregue à escrita do capítulo “João, Edésio e um violão”, vi-me na iminência de reescrevê-lo ou, até mesmo, excluí-lo da obra. 
Taciturno e desnorteado, fui, repentinamente, eriçado por uma inexprimível esperança que me soergueu da cadeira e me levou ao telefone. Alheio à racionalidade mental (que me gritava “àquela hora, um notívago não estaria acordado”) disquei, celeremente, a combinação inolvidável dos dígitos, submerso na incerteza. Sentia o tempo desacelerando o passo, pois que se fazia infindável o intervalo entre o discar e o chamar, mas, chamou. E antes que eu concluísse um suspiro, mal chamando uma vez, ouvi, pasmo, os chiados gerados por alguém a esticar o fio do telefone, prestes a responder. 
- Alô!
O tempo congelara, congelando-me também, num instante de eternidade que me trouxe medo, pavor e calafrios. Em meio ao turbilhão de sensações e pensamentos (“Será que serei destratado?”; “Haverá ignorância na fala dele?”; “O criador da revolucionária batida violonística não se interessará por um simplório universitário!”) tive de responder à anterior e divinal resposta que aguardava um interlocutor. Trêmulo e com a voz embargada, lancei-me ao abismo do desconhecido.
- Alô, João! Aqui quem fala é Edésio, estudante do curso de Jornalismo da Universidade do Estado da Bahia, que fica localizada em Juazeiro, sua terra natal. Só estou ligando porque estou escrevendo um livro, sobre a história de Edésio Santos, e gostaria de saber se é verdade que ele era um grande amigo do senhor! 
Seguiu-se um momento de infinitude, que me gelara a espinha, marcado por um silêncio torturante e ensurdecedor. Mas, singrando o rio de emoções que era eu, ali, uma voz doce e indescritivelmente tenra, quase infantil, floresceu: 
- Poxa! Edésio... Que lembrança maravilhosa você me proporcionou! Muito obrigado!
“Que momento angélico, Meu Deus”, pensava eu, enlevado e muitíssimo aliviado, enquanto passeava pelos meus outros eus, no diálogo com João, ora sendo o universitário desacreditado, ora sendo o músico que, àqueles instantes incríveis, dialogava com um gênio amoroso e acessível. Dialogamos durante mais de meia hora, que, teimosa e apressada, decidira passar voando, contudo, foi suficiente para decifrar alguns enigmas e desfazer estereótipos como, sobretudo, o que apontava João como um senhor sisudo e insensível. O contrário disso é muito pouco, pois que se trata de um cavalheiro extraordinariamente tímido e afável, que se desculpava até quando eu interrompia a conversa, por conta do nervosismo.
Em órbita, retornei ao computador, acessei a internet e pus para tocar “Caminhos Cruzados”, na voz e no violão de João, a fim de concluir a escrita do capítulo que, agora, estaria respaldado pela entrevista mais inacreditável, especialmente para mim. O livro, que eu e Edilane tivemos a honra de escrever, foi concluído, felizmente, e a memória de Edésio Santos, xará, biografado e amigo querido de João Gilberto, à posteridade se dispõe. Hoje, entendo que se tratou de um presente do Edésio, pelo trabalho que fizemos.


Por Edésio César, jornalista e músico. Texto publicado na Revista A Barca (2016), periódico editado pelos jornalistas Leticia Figueiredo e João Ramalho.
Ilustração: Ieroshua Iahueh
Edição para o Multiciencia: Moisés Cavalcante