Sobre ondas, ritmos e contágios

Multiciência 17 abril 2020

“Sem música a vida seria um erro”. Em tempos de pandemia, quando procuramos pelos errados, por karmas pra nos coçar, por culpados não microscópicos para o caos, a máxima de Friedrich Nietzsche ganha proporções planetárias. Enquanto cientistas do mundo todo se lançam no desenvolvimento de vacinas contra o Covid-19, a música emerge como espécie de elixir, receitado por profissionais e amadores com objetivo de trazer conforto e saúde mental aos milhões de confinados.  
   
Gilberto Gil e sua neta Flor imprimiram brasilidade em interpretação veneno anti-pandemia de “Volare” para a campanha “Nós somos Itália” do Ministério das Relações Exteriores italiano. Aqui no Brasil As “lives shows” tem feito história. Apresentações como as da dupla Jorge e Mateus e Marília Mendonça ultrapassaram números de acessos simultâneos que pertenciam a ninguém menos que Beyoncé. A live de Marília Mendonça, na noite de 8 de abril se tornou a maior transmissão da história do Youtube, com 3,2 milhões de acessos simultâneos. E arrecadou 200 toneladas de alimentos.

Essas iniciativas vocalizaram também manifestações contrárias a esse formato de produção. A mobilização de pessoal pra integrar as equipes de produção das livesgera aglomerações, ainda que pequenas. E fere, segundo os críticos, os princípios de isolamento social propostos pela Organização Mundial de Saúde (OMS). No próximo dia 18 de abril é a vez de Lady Gaga promover um show virtual, em parceria com a OMS, intitulado “Um mundo: juntos em casa”. O objetivo é arrecadar fundos para combater a pandemia. O evento será transmitido em diversas plataformas, incluindo YouTube, Facebook, Instagram e Twitter. Convidados pra lá de especiais, como Paul MacCartney, Maluma, Elton John, Anitta e Billie Elish já confirmaram presença virtual. Voltando ao território nacional, destacamos a tristeza pelas mortes do maestro Martinho Lutero e da maestrina Naomi Munakata. Os dois se foram por complicações do covid. A perda desses grandes regentes brasileiros entristece nossa música. E deixa aquela sensação de que o vírus não poupa, em metáfora, nossas cigarras da música que também eram formigas do ofício que desenvolviam com devoção e método.

Cubo alusivo às diversas telas, no livro O amador no Audiovisual, de Jonathan Mata e arte de Jheffertan Mata.
A suspensão da “vida normal”, ao que tudo indica, não afetou a capacidade criativa de diversos artistas. O músico paraibano Chico César acaba de lançar “Se essa praga morresse”, canção em que aborda o isolamento social. O rapper carioca MV Bill disponibilizou a música “Quarentena”, gravada em casa. Já o rapper baiano Baco Exu do Blues puxou a fila de músicas da pandemia e produziu, em três dias, o EP “Não tem bacanal na quarentena”. Viralizar, aqui, tem uma conotação positiva, oposta à da área da saúde na luta contra a doença.  

Precisamos falar também dos artistas anônimos e cidadãos comuns que todos os dias lotam as janelas do planeta levando música para a vizinhança. E as imagens e sons acabam contagiando o mundo pelos noticiários e redes sociais. Em tempos de pandemia, precisamos, mais do que nunca, da música. É ela que pode nos transportar para ambientes oníricos, contemplativos, assépticos, no instante de um play. Reorganizar, ainda que de modo segmentado, o caos televisado, compartilhado, tagueado. Conectar janelas analógicas e plataformas digitais.

Em dias de quarentena, cantar pode se transformar num grito de libertação contra os fantasmas que o confinamento anda parindo em progressão geométrica. E, servir, ainda, para que possamos treinar nossos olhos e ouvidos para uma ação que anda enferrujada: o ato de ver e ouvir com generosidade. De parar para escutar e contemplar - as performances, luzes, melodias, vozes, bem como as diferenças e ruídos de comunicação que têm nos roubado o ritmo. Sem música - e sem empatia (eu completo) - a vida é um erro.

Artigo escrito por: Jhonatan Mata, jornalista, Mestre em Comunicação (UFJF), Doutor em Comunicação- UFRJ/BlanquernaSchool Barcelona e íntegra o Núcleo de Jornalismo e Audiovisual da Facom/UFJF. É também coordenador do Projeto “Música para olhos e ouvidos” (Facom/UFJF). Jhonatan é estudioso da área de telejornalismo e autor dos livros Um telejornal pra chamar de seu"(Insular,2013) e "O amador no Audiovisual"(Editora UFJF,2020). Siga a página pessoal @jotamata no Instagram e Facebook.
Fotos: Arquivo pessoal de Jhonatan Mata