Leitura e infância: Por que ler para as crianças desde o nascimento?

Multiciência 14 maio 2020


“Se não conhecer as árvores te perderás nos bosques, mas se não conheces as histórias te perderás na vida.” (Provérbio siberiano)

ERA UMA VEZ Quantas vezes viajamos nessas palavras e atracamos em lugares diferentes, personagens esquisitos, animais falantes ou finais impossíveis? Com o coração exultante e os olhos brilhantes? Cada um de nós possui uma história, relações diferentes com a leitura e o reconto. E, os personagens nem precisavam ser tão esquisitos para que, sem nenhum questionamento, entrássemos na toca a procura do Coelho Branco’, subíssemos no tapete voador, mergulhássemos no Reino das Águas Claras. Nesses momentos e em tantos outros, fomos marcados pela Literatura Infantil, a imaginação foi despertada. 
Entretanto, alguns adultos insistem em utilizar a literatura infantil apenas como ferramenta de ensino, que muitas vezes, possui uma visão estereotipada do mundo. Nesse processo, não podemos esquecer que é literatura e é arte (COELHO, 2000). Assim, nas palavras, escritas ou ditas em diferentes contextos, fazem um contraponto entre o imaginário e o real’, ‘o bem e o mal e como arte, fortalece os sentidos e estimula a criatividade. Através da literatura é possível entrar em dimensões nunca visitadas, estabelecer conexões inesperadas ou viajar o mundo inteiro.
Não importa se lemos para uma criança com auxílio do livro, se contamos histórias de nossas memórias, se estudamos para contá-las da melhor maneira ou se é uma leitura autônoma da criança. Todas estas possibilidades possuem em comum o diálogo com realidades, passadas e futuras, diversidade de culturas, etnias, valores, crenças e contextos sociais. Abordam os mistérios da existência, trazem exemplos de virtudes, insurgem a sensibilidade, propiciam o autoconhecimento e reflexões profundas. Ampliando o diálogo com nossos ancestrais,a torná-los vivos dentro de nós. 
Acervo Pessoal: Adriana Campana e Edilane Teles
Assim, por que ler para a criança? Porque provoca os sentidos de proteção; evidencia o beneficio que a criança adquire ao ouvir histórias; fortalece o contato diário com a leitura vivida, principalmente quando acontece em família durante a primeira infância, mas também mediada pelos professores; qualifica as experiências precoces que potencializam o desenvolvimento da linguagem, a interação e compreensão da leitura de textos escritos ao entrar na escola; cria um fio imaginário de amor entre o cantador de histórias e aquele que escuta; desperta ao prazer de contar e ouvir histórias, além do ato de comunicar; toca as mentes e o coração, como diz um ideograma Japonês ‘SAKU TAKU NO-KI’, o ‘momento’ no qual prendem vidas as histórias.
Para que a literatura infantil esteja verdadeiramente presente na vida das crianças precisamos criar ações que estimulem, ‘lembrando’ que a nossa casa, além das escolas, é o lugar chave para o descobrimento literário. Dois pontos são fundamentais para a entrada da criança no mundo leitor. O primeiro é o exemplo, nossos filhos aprendem observando nossos hábitos e atitudes. Uma família de leitores influenciará positivamente o ingresso da criança no caminho da leitura. Outro ponto é o contato com um acervo literário diverso em gêneros e temas. 
Entretanto, estes itens possuem fragilidades na maioria das famílias brasileiras, ora pela falta de conhecimentos, ora pela condição socioeconômica. O que não impede que outras possibilidades de estímulos sejam acionadas, como é o caso da contação ou da leitura de histórias, que são propostas diferentes, mas que possuem muitos pontos comuns que iremos ressaltar.
Acervo Pessoal: Adriana Campana e Edilane Teles
Por que ler, contar, narrar?  As pesquisas têm demonstrado que a inclusão da literatura infantil nas rotinas e cotidiano de crianças de 0 a 6 anos influenciam de forma positiva, seja do ponto de vista relacional, pois é uma oportunidade de interação com os pais e outros, como do ponto de vista cognitivo, uma vez que potencializa o desenvolvimento, a compressão da linguagem e a capacidade de leitura, além de colaborar com a consolidação do habito de ler.
Ler para uma criança não é a mesma coisa que contar uma história. Lemos o que o autor escreveu. Não estávamos no momento de sua criação, somos leitores e como tal, mostramos oralmente parte das intencionalidades que estão presentes naquelas palavras. Muitas vezes utilizamos expressões, gestos, entonação de voz para que a criança tente vivenciar aquela ocasião tão especial. As pausas são tão importantes como as palavras. Muitas vezes as crianças pedem auxílio ao ilustrador para certificarem-se do que estariam imaginando.
Lemos histórias para aqueles que não se apropriaram do sistema de escrita alfabética e para aqueles que já se apropriaram, mas que percebem o prazer do vínculo criado nessa leitura. Lemos várias vezes o mesmo livro de preferência, pedido daqueles que querem fortalecer sua percepção da imutabilidade das narrativas. Nesse sentido, ler as histórias preferidas provoca, por assim dizer, um efeito “balsâmico” às mentes, pois reforça as relações, dá liberdade de ‘colher’ os significados que nos tocam, divertem e dá ‘asas’ à imaginação.
a contação de histórias depende do contador e da imaginação da criança. Celso Sisto destaca que este deve se apaixonar pela história que escolheu e contar como se estivesse participado daquele momento, com verdade, emoção, espontaneidade. O timbre e o ritmo da voz, assim como suas nuances, são de extrema importância para assegurar a concentração e entendimento da criança. Mas é importante ressaltar que contar histórias não é teatralizá-las. Também não é um talento nato, devemos estudar para proporcionar tais momentos. Podemos até contar com ajuda de alguns elementos, mas a história está na alma, na voz e nos olhos do contador. 
Para quem entra nesta importante e necessária aventura dos livros infantis, como leitores e contadores de histórias, é vivamente aconselhável experimentar, ler com as crianças, que é diferente de ler às crianças. A técnica (importante também), virá por si, provando e reprovando, escutando os outros e a si mesmo, lendo e relendo.
Quais livros podemos escolher para ler, para contar ou para incentivar que as crianças leiam? O que devemos analisar em um livro de literatura infantil, que seja pertinente colocar como sugestão para crianças, pais e educadores? 
Inicialmente destacamos a importância do objeto livro, que será manuseado e com sorte repetidamente folheado, lido e relido. Como diz poeticamente Odilon Moraes, o livro tem um corpo, que é o formato, tamanho, cores, cheiro, textura, quantidade de folhas e tipo de letras e uma alma, que será percorrida na leitura do seu texto (palavras e imagens). Tocar, sentindo seu corpo e adentrar na sua alma é o convite do livro infantil às crianças. Assim, bons livros, significam qualidade de projeto gráfico, autores e ilustradores, que na maioria das vezes não sabemos onde começa um e acaba o outro.  
Além da qualidade do livro, devemos nos preocupar com a diversidade de gêneros textuais. Fábulas, mitos, lendas, conto de fadas, poemas, narrativas, quadrinhos, livros de imagem são alguns dos gêneros que encontramos no mercado e que devemos proporcionar para nossas crianças. Neles estão implícitas tradições, feitos históricos, como eram compreendidos os mistérios, dentre tantas outras percepções. Além disso, os temas devem trazer a diversidade do mundo
Assim, sobre a escolha dos livros é possível afirmar que:
    É interessante recorrer a especialistas para construir uma rede, elaborando uma lista de livros; (Sugestões ao final deste texto)
    Devemos lembrar que antes de ler uma história, devemos conhecê-la. Não há sentido ler uma que não gostamos, a menos que seja um pedido; ler sem vontade é uma barreira no despertar da leitura;
    Fazer um esforço para ler as histórias preferidas da criança, pois quando o fazemos estamos dando elementos que compõem as respostas que buscam, quando dizem “conta de novo!”.
Assim, reforçamos que ler e/ou contar histórias é importante porque cria o habito de ouvir; aumenta o tempo de atenção; aumenta o desejo de aprender a ler; é uma experiência muito prazeirosa para o adulto e a criança; acalma, da segurança e consola; reforça a ligação afetiva e cognitiva entre aquele que lê e aquele que escuta (MERLETTI, 2000; 2001).
Acervo Pessoal: Adriana Campana e Edilane Teles
Não temos aqui a intencionalidade de limitar leituras ou especificar idades para cada título, mesmo porque acreditamos que o universo literário transcende muitas regras que antes pareciam estanques. Queremos propor possibilidades de leitura/escuta a partir de experiências. Isso não quer dizer que o livro que está indicado para um grupo não possa ser usado por outro. Quanto ao livro de imagem, que não possui texto alfabético, apenas o título, cabe salientar sua importância em todas as fases da leitura autônoma da criança e na leitura do adulto também. A narrativa imagética estimula a oralidade, criatividade, imaginação, percepção da sequência da história, oralidade, propõe uma leitura crítica e o fortalecimento da autoestima da criança, que muitas vezes não quer realizar a leitura por não dominar o sistema de escrita alfabética. 
Além dos livros que contém apenas imagens, trazemos sugestões de coleções que propõem a leitura autônoma para crianças que estão começando a se apropriar da escrita alfabética. Estas coleções levam em conta os graus de dificuldade da leitura, a partir das palavras que contém no texto. É o caso da coleção Estrelinhas (1, 2 e 3), Mico Maneco (I, II, III, IV E V) e Gato e Rato, que estão nas sugestões.
Outro direcionamento importante nesta pequena lista diz respeito aos contos de fadas’. Charles Perrault, Jacob e Wilhelm Grimm, Hans Christian Andersen e tantos outros trouxeram dos contos orais os conflitos da existência humana e soluções em qualquer época. As crianças experienciam suas questões internas de modo simbólico (BETTELHEIM, 2002). Nesse sentido, medo, mal, limites ajudam a formar sua personalidade. Por isso questionamos alguns filtros contemporâneos que se impõem aos contos de fadas, além da necessidade de uma leitura crítica aos padrões da sociedade europeia do século XVII. Não trazemos indicações de contos para leitura ou contação, mas reiteramos a sua importância, inclusive em contextos e com personagens diferenciados. 
Finalizamos com um decálogo dedicado a mães e pais sobre a importância de ler aos próprios filhos, como ação essencial do cotidiano e da vida.

Fala, canta e sorria ao teu filho, desde quando vem ao mundo: a tua voz o acaricia, o conforta, o circunda.
Fala, canta e sorria ao teu filho, desde quando vem ao mundo: repete para ele palavras. Espere, com calma, que ele te responda.
Fala, canta, sorria ao teu filho. Com os livros ilustrados, lhes abrirá um mundo: viaja com ele entre palavras e cores, ele te escutar com crescente atenção.
Fala, canta, sorria ao teu filho. Transforma o seu mundo em pequenas histórias: faça-lhes entender, com gestos e palavras, a importância de estar juntos.
Fala, canta, sorria ao teu filho. Leia os livros que mais ama.
As histórias que escuta o faz voar, lhes dão palavras que não conhecia, colocam em fuga os monstros mais tenebrosos, lhes trazem respostas a mil porquês.
Fala, canta, sorria, reconta, leia todos os dias ao teu filho. Diga-lhe assim quanto bem voce lhe tem, faça um presente que dura para sempre.
Somos nascidos para ler, mas antes para escutar: leia todos os dias uma história ao teu filho. Rita Valentino Merletti (2006)

Sugestões de livros para leitura autônoma das crianças 
           Crianças que ainda não dominam o sistema de escrita alfabética: 
ONDA. Suzy Lee. Cosac Naify (livro de imagem) 
MAS SERÁ QUE NASCERIA A MACIEIRA? Alê Abreu/Priscilla Kellen. FTD. (livro de imagem) 
O LIVRO DA COM-FUSÃO: contos de fadas. Ilan Brenman. Melhoramentos. 
CABE NA MALA. Ana Maria Machado e Claudius. Salamandra. (coleção Mico Maneco) 
O GALO MALUCO. Sonia Junqueira. Ática (coleção Estrelinhas) 
TELEFONE SEM FIO. Ilan Brenman e Renato Moriconi. Cia das Letrinhas (livro de imagem) 
BRUXINHA ZUZU E GATO MIÚ. Eva Furnari. Moderna (tirinhas de imagem) 

           Crianças que acabaram de se apropriar do sistema de escrita alfabética 
BRINQUEDOS. André Neves. Ave Maria. (livro de imagem) 
FLICTS. Ziraldo. Melhoramentos 
DIÁRIO DA JULIETA. Ziraldo. Globo (Quadrinhos) 
MICO MANECO. Ana Maria Machado e Claudius. Salamandra (coleção Mico Maneco) 
TATU BOBO. Ana Maria Machado e Claudius. Salamandra (coleção Mico Maneco) 
O SUSTO DO PERIQUITO. Sônia Junqueira. Ática (coleção Estrelinhas) 
FOGO NO CÉU. Mary França e Eliardo França. Ática (coleção Gato e Rato) 

           Crianças com leitura fluente 
MUNDINHO DO RIO. Cixto de Assis Bandeira Filho e Vanderléa Andrade Pereira. Franciscana. (lendas) 
AMORAS. Emicida. Cia das Letrinhas. 
FÁBULAS DE ESOPO. Ruth Rocha. Salamandra (fábulas) 
FELPO FILVA. Eva Furnari. Moderna (gênero carta) 
MALUQUINHO POR BICHOS. Ziraldo. Globo. (quadrinhos) 
LINO. André Neves. Callis 
A BRUXINHA INVEJOSA. Pedro Bandeira. Moderna. 

Sugestões de livros para leitura de adultos para crianças 
A COR DE CORALINE. Alexandre Rampazo. Rocco 
MARCELO, MARMELO, MARTELO E OUTRAS HISTÓRIAS. Ruth Rocha. Salamandra 
HISTÓRIAS AFRICANAS PARA CONTAR E RECONTAR. Rogério Andrade Barbosa. Editora do Brasil 
BRUNA E A GALINHA DANGOLA. Gercilga de Almeida. Pallas 
O GRÚFALO. Julia Donaldson & Axel Scheffler. Brinque-book 
O CARTEIRO CHEGOU. Janet & Allan Ahlberg. Cia das Letrinhas. 
OU ISTO OU AQUILO. Cecília Meireles. Global. (poesia) 
O PICA PAU AMARELO. Monteiro Lobato. Globo 

Possibilidades de livros para contação de histórias 
           Crianças até 2 anos 
As histórias para crianças muito pequenas devem conter músicas, movimento, repetição. Histórias musicadas ou parlendas com movimento são muito aceitas pelos pequenos. 
           Crianças a partir dos 2 anos até 7 anos 
FLÁVIA E O BOLO DE CHOCOLATE. Miriam Leitão. Rocco 
RBARO. Renato Moriconi. Companhia das Letrinhas 
A CASA SONOLENTA. Audrey Wood. Ática 
O NABO GIGANTE. Aleksei Tolstói & Niamh Sharkey. Girafinha 
QUAL O SABOR DA LUA? Michael Grejniec. Brinque Book 
A BRUXA DO BATOM BORRADO. Anderson Novello. Pensa Mais. 
CHAPEUZINHO AMARELO. Chico Buarque. Autêntica. 

Algumas referências: 
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 
CADEMARTORI, Lígia. O que é literatura infantil. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. 
COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: Teoria, análise e didática. São Paulo: Moderna, 2000. 
CUNHA, Maria Antonieta Antunes. Literatura infantil: teoria & prática. 18. ed. São Paulo: Ática, 2003. 
GREGORIN FILHO, José Nicolau. Literatura Infantil: Múltiplas Linguagens na Formação de Leitores. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2009. 
MERLETTI, Rita Valentino. Leggere ad alta voce. Milano: Itália, Arnoldo Mondadori, 2000.
___________. Libri e lettura da 0 a 6 anni. Milano: Itália, Arnoldo Mondadori, 2001.
OLIVEIRA, Ieda. O que é qualidade em ilustração no livro infantil e juvenil: com a palavra o ilustrador. São Paulo: DCL, 2008. 
SISTO, Celso. Textos e pretextos sobre a arte de contar histórias. Belo Horizonte: Aletria, 2012. 
ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 1985. 

Texto produzido pelas responsáveis e organizadoras da Coluna Polifonia

Adriana Maria Santos de Almeida Campana 
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Territórios da Universidade do Estado da Bahia (PPGESA/DCH III/UNEB. Membro do Grupo de Pesquisa em Educação Contextualizada, Cultura e Território - EDUCERE. Email:didacampana@yahoo.com.br. 

Edilane Carvalho Teles:
Doutora em Comunicação pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade de São Paulo (PPGCOM – USP); Docente da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Departamento de Ciências Humanas, Campus III. Vice-Líder do Grupo de Pesquisa em Educação Contextualizada, Cultura e Território - EDUCERE. E-mail: edilaneteles@hotmail.com