O Amor em Tempos Sombrios

Multiciência 15 maio 2020

O ano é 1943 e num bosque, diante de “uma grande fome e um grande frio”, vivem “uma pobre lenhadora e um pobre lenhador”. O maior anseio da pobre lenhadora é ser mãe, ela já pediu a Deus, ao céu, as estrelas e a natureza. Suplicou tanto que cansou e pedia apenas para que a fome passasse. Ela gosta de observar o trem que passa e repassa, imaginando-se uma viajante, “arrancando de si aquela fome, aquele frio, aquela solidão”. Para atiçar a sua curiosidade, seu marido, o pobre lenhador lhe diz que ali no trem vão “mercadorias”. Ingenuamente, ela se enche de esperança, esperando que algum dia uma das mãos que aparece pelas grades do vagão do trem lhe jogue um presente.

Mal sabe ela que as mercadorias que vão dentro do trem, no comboio 49, são crianças, homens, mulheres, velhos, judeus. Ali vai um pai perguntando-se a todo instante: “que fazer?”. Ali também vão sua esposa e seu casal de gêmeos recém-nascidos, tão breves, mas “já judeus, já fichados, já classificados, já procurados, já perseguidos”, sendo trazidos de um campo de deportação em Drancy e indo em direção ao que o pai suspeita ser algo tenebroso. Em um ato de desespero pega uma das crianças sem nem olhar para saber se é o menino ou a menina, a enrola num xale feito “de fios de ouro e prata” e pelas grades da lucarna do vagão joga o bebê em direção a neve, onde uma senhora corre em direção ao trem. A pobre lenhadora, enfim, recebeu o seu presente.

Esse é o enredo do livro “A mercadoria mais preciosa: uma fábula” do autor Jean-Claude Grumberg, lançado pela editora Todavia no ano passado. Nascido em Paris em 1939, Grumberg é filho e neto de judeus que foram transportados em comboios em direção aos campos de extermínio nazistas. Para contar essa fábula, ele se inspirou nas histórias verdadeiras de “O Memorial da Deportação dos Judeus da França”, em histórias como a de Abraham e Chaïga Wizenfeld que, junto com seus filhos gêmeos Fernande e Jeannine, foram levados de Drancy, cidade francesa, no dia 7 de dezembro de 1943 pelo Comboio 64 após 28 dias do nascimento das crianças.

Escrita de maneira inventiva e muito poética, a curta e sombria fábula de Jean-Claude nos lembra dos horrores de um período brutal da História, do que os homens são capazes quando movidos pelo ódio e conformismo. Sobretudo, é um exercício de imaginação que transforma um trauma em literatura belíssima passando uma valorosa e necessária moral da história.

Ao contar a história da garota chamada “mercadoriazinha” que foi salva de erguer-se ao céu como “fumaça espessa e escura” para ser amada por uma pobre lenhadora e um pobre lenhador que a tinha como “sem-coração” por ser judia, Jean-Claude narra o que pode fazer a diferença em tempos sombrios. Por amor a uma criança, o casal vence o racismo, a ignorância, a mentira e o medo disseminados pelo regime nazista. Em tempos sombrios, a esperança se chama amor. “A única coisa que merece existir nas histórias como na vida verdadeira. O amor, o amor oferecido às crianças, às suas como às dos outros. O amor que faz com que, apesar de tudo o que existe, e de tudo o que não existe, o amor que faz com que a vida continue”, como escreve Jean-Claude.



Por Jônatas Pereira, estudante de Jornalismo em Multimeios da UNEB