Quando músicas nascem das narrativas literárias

Multiciência 25 maio 2020

Há muito tempo as diversas manifestações artísticas se cruzam em situações de criatividade entre linguagens diferentes. Seja o cinema com a música, a literatura com o cinema, a música com as artes plásticas, as artes plásticas com cinema ou literatura, e claro, a literatura com a música. Foram muitas as narrativas literárias que se tornaram canal de inspiração para compositores que fazem o estilo MPB e construíram canções que fazem referências aos vários clássicos da literatura - incluindo romance, conto ou poesia. Não necessariamente citando trechos de livros e nem mesmo nome de seus autores.
Pontuaremos exemplos de canções inspiradas no horizonte literário de grandes nome da literatura brasileira e estrangeira. Grande Sertão Veredas, do mineiro Guimarães Rosa, um dos maiores clássicos do nosso universo literário já extravasou a linguagem das artes, do teatro, do cinema e da música. Em 1985, no  disco "Diadorim, Noite Neon", Gilberto Gil, tirou o título da canção rural 'Casinha Feliz', e em seus versos, transita pelo universo mineiro de Rosa, reforçando as belezas e resistência do sertão nos tempos modernos.
Em um dos versos e de forma explícita, ele contempla personagens da obra: "De dia, Diadorim / De noite, estrela sem fim/É o grande sertão Veredas/ Reino da Jabuticaba/ As minas de Guimarães Rosa/ De ouro que não se acaba/ Onde resiste o sertão/ Toda casinha é feliz". Ao final, Gil arremata o sentimento humano e a religiosidade da história: "Porque à tardinha tem Ave Maria e o beijo da solidão".

O cantor e compositor pernambucano Lenine, em seu disco Chão (2011), também lapidou de forma nostálgica,  nos versos  de "Amor é pra quem ama",  o sentimento amoroso presente entre os personagens da mesma obra, conforme declarou à época do lançamento do disco. "Amor é pra quem vive/ Amor que não prescreve/Eterno,Terno, Pleno, Insano/ Luz do sol da noite escura/Qualquer amor já é um pouquinho de saúde/ Um descanso na loucura".
Saltemos para  1979, ano em que Chico Buarque entrou em cena com o projeto musical e teatral,  "Ópera do Malandro" que gerou álbum duplo, bem recebido pela crítica. A canção "Geni e o Zeppelin"  rende, até hoje, rende interpretações divergentes sobre a personagem central. A letra é uma longa narrativa em terceira pessoa sobre uma travesti que é “um poço de bondade” e que sofre com a ingratidão e a hipocrisia da cidade onde vive. Contudo, foi de fato inspirada, segundo pesquisadores da obra de Buarque, no conto Bola de Sebo, do escritor francês Guy de Maupassant (1850-1893), considerado o principal autor de narrativas curtas de seu país.
Milton Nascimento lançou, em 1981, o elogiado disco "Caçador de Mim", cujo título pela primeira vez  não foi de sua autoria, mas da música dos amigos Sérgio Magrão/Luiz Carlos Sá. A canção tem como pano de fundo a ideia em torno do personagem  do livro "O Apanhador no Campo de Centeio" do escritor norte-americano Jerome David Salinger (1919–2010). Na estrofe final os compositores arrematam: "Longe se vai/Sonhando demais/Mas onde se chega assim/Vou descobrir o que me faz sentir/Eu, caçador de mim".
Na MPB, também  há canções que não são literalmente versão e  nem sempre passa pelo ato de se musicar um poema. Em alguns casos, compositores fizeram letras inspiradas também em poemas, em vez de musicá-lo. É o caso da bela "Elegia", parceria do poeta  Augusto De Campos/ Péricles Cavalcante, que Caetano Veloso agregou ao repertório do disco Cinema Transcendental (1979).  A canção foi inspirada no poema “Elegy: going to bed”, de John Donne (1572-1631), poeta jacobita inglês, pregador e o maior representante dos poetas metafísicos da época.

Já na abertura da canção, muitos seguidores do artista tropicalista  imaginam ser uma de suas pérolas criativas, contudo,  de alguma forma a poética da letra faz o intercâmbio com o estilo de suas letras: "Deixa que minha mão errante adentre atrás, na frente, em cima, embaixo, entre/ Minha América, minha terra à vista/ Reino de paz se um homem só a conquista/ Minha mina preciosa, meu império/ Feliz de quem penetre o teu mistério"
Versos do  poeta Fernando Pessoa (1888-1935) já entraram no roteiro de espetáculos de Maria Bethania, intérprete de veia teatral que recita trechos de seus autores preferidos nos shows. Versos que se encontram como numa pororoca às canções. Em 1975, no clássico disco/show Chico Buarque e Maria Bethania - Ao vivo, a radiante "Sonho impossível”, versão de Chico e Ruy Guerra da canção norte-americana “The impossible dream”, de Joe Darion e Mitch Leigh, foi gravada e lançada no espetáculo, canção que se consagrou na voz de Maria Bethânia. Antes, a canção fez parte também da trilha sonora do espetáculo “O homem de la mancha”, versão de Paulo Pontes e Flavio Rangel para o musical da Broadway “Man of la mancha”, de Dale Wasserman.

A ideia surgiu a partir do poema Sonho Impossível, do poeta português, e traz vários  pontos similares à ideia original. Chico e Ruy Guerra conclamam no seguinte trecho: "Sonhar mais um sonho impossível/ Lutar quando é fácil ceder/Vencer o inimigo invencível/ Negar quando a regra é vender/ Sofrer a tortura implacável/ Romper a incabível prisão/Voar num limite provável/ Tocar o inacessível chão/É minha lei, é minha questão/ Virar este mundo, cravar este chão".

Rock e Literatura
O roqueiro baiano Raul Seixas (1945-1989) que, em vida ganhou a alcunha de Maluco Beleza, no auge da carreira sempre esteve antenado com a literatura, sobretudo focada no esoterismo, além de clássicos universais. Cinco anos antes de sua morte, Raul lançou o disco Metrô Linha 743 (1984),  décimo segundo álbum de estúdio, no qual trouxe a balada "Um messias indeciso" cuja letra pavimenta suas ideias sobre a era cristã: "Certa vez houve um homem comum/Como um homem qualquer/ Jogou pelada descalço/ Cresceu e formou-se em ter fé/Mas nele havia algo estranho/Lembrava ter vivido outra vez/Em outros mundos distantes/E assim acreditando se fez/ E acreditando em si mesmo Tornou-se o mais sábio entre os seus/E o povo pedindo milagres/ Chamava esse homem de Deus." 
A música "Um Messias Indeciso" teria sido composta após sua leitura do livro  "Ilusões - As aventuras de um Messias Indeciso" , do escritor norte americano Richard Bach, mesmo autor de Fernão Campelo Gaivota. 'Ilusões' é, para alguns críticos, um livro sobre a capacidade em acreditar, uma filosofia de vida carregada de magia e de fé, na possibilidade que qualquer homem tem de fazer o que quiser, sobretudo, deixando as arestas de que tudo não passa de ilusões, um jogo de espelhos que ocultam a essência última do ser.
O livro "Os Lusíadas", de Luís Vaz de Camões -  considerado uma das maiores figuras da literatura lusófona e um dos grandes poetas da tradição ocidental - também inspirou na década de 1980, a banda de pop rock Legião Urbana. O líder do grupo, compositor e vocalista Renato Russo lapidou "Monte Castelo", constituída basicamente por recortes de Camões e da Bíblia, mas que contém a sua ideia central nas redondezas do título. Monte Castelo é o nome de uma região ao norte da Itália, onde foi travada a chamada Batalha de Monte Castello ao fim da segunda guerra mundial.  
Outra banda ícone surgida na explosão roqueira dos anos 1980, Paralamas do Sucesso, também fez algumas incursões a partir de ideias literárias. Foi o que o compositor e líder da banda Herbert Vianna fez com Lanterna dos Afogados, inspirado no livro Jubiabá, de Jorge Amado. A narrativa escrita em 1935 é composta de contos e lendas que fazem parte do imaginário do povo nordestino, além das histórias de marinheiros viajantes que levam uma vida de constantes perigos.
Essas histórias educam o personagem Balduíno durante toda a primeira e segunda parte do romance. Na letra, Herbert descreve:  "Há uma luz no túnel/ Dos desesperados/Há um cais de porto/Pra quem precisa chegar/Eu estou na Lanterna dos Afogados/Eu estou te esperando/Vê se não vai demorar". Em outro disco, o cantor compôs "Busca vida",  com observações centradas na obra O Pequeno Príncipe,  do escritor francês Antoine de Saint-Exupéry, que conta a história da amizade entre um homem frustrado por ninguém compreender os seus desenhos, com um principezinho que habita um asteróide no espaço.
Titãs, voltaram ao sucesso radiofônico em 2002 com "Epitáfio", canção single cantada por Sérgio Britto no disco A Melhor Banda de Todos os Tempos da Última Semana e se tornou tema da novela Desejos de Mulher. A letra absorve a ideia de arrependimentos que uma pessoa pode ter na vida: "devia ter amado mais", "devia ter me importado menos, com problemas pequenos". Talvez seja a mais polêmica e interessante das intertextualidades musicais costuradas da mesma ideia dos versos de "Instantes", da americana Nadine Stair que escreveu: "Na verdade, bem poucas coisas levaria a sério./Seria menos higiênico. Correria mais riscos,viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais rios. 


Coluna Do Texto ao Texto (Letras e sons) por Emanuel Andrade, jornalista, professor do curso de Jornalismo em Multimeios e Doutorando em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Trabalhou como Repórter no Jornal do Comércio e foi pioneiro no jornalismo cultural na região, ao assinar a coluna de Literatura e Música  para o Gazzeta do São Francisco na década de 1990 e para rádios do Vale do São Francisco. 

Arte Gráfica: Gabriela Yane, estudante de Jornalismo