Há muito tempo as diversas manifestações artísticas se cruzam em
situações de criatividade entre linguagens diferentes. Seja o cinema com a
música, a literatura com o cinema, a música com as artes plásticas, as artes
plásticas com cinema ou literatura, e claro, a literatura com a música. Foram
muitas as narrativas literárias que se tornaram canal de inspiração para
compositores que fazem o estilo MPB e construíram canções que fazem referências
aos vários clássicos da literatura - incluindo romance, conto ou poesia. Não
necessariamente citando trechos de livros e nem mesmo nome de seus autores.
Pontuaremos exemplos de canções inspiradas no horizonte literário
de grandes nome da literatura brasileira e estrangeira. Grande Sertão Veredas,
do mineiro Guimarães Rosa, um dos maiores clássicos do nosso universo literário
já extravasou a linguagem das artes, do teatro, do cinema e da música. Em 1985,
no disco "Diadorim, Noite Neon", Gilberto Gil, tirou o
título da canção rural 'Casinha Feliz', e em seus versos, transita pelo
universo mineiro de Rosa, reforçando as belezas e resistência do sertão nos
tempos modernos.
Em um dos versos e de forma explícita, ele contempla personagens
da obra: "De dia, Diadorim / De noite, estrela sem fim/É o grande
sertão Veredas/ Reino da Jabuticaba/ As minas de Guimarães Rosa/ De ouro que
não se acaba/ Onde resiste o sertão/ Toda casinha é feliz". Ao final,
Gil arremata o sentimento humano e a religiosidade da história: "Porque
à tardinha tem Ave Maria e o beijo da solidão".
O cantor e compositor pernambucano Lenine, em seu disco Chão (2011),
também lapidou de forma nostálgica, nos versos de "Amor é
pra quem ama", o sentimento amoroso presente entre os
personagens da mesma obra, conforme declarou à época do lançamento do disco.
"Amor é pra quem vive/ Amor que não prescreve/Eterno,Terno, Pleno, Insano/
Luz do sol da noite escura/Qualquer amor já é um pouquinho de saúde/ Um
descanso na loucura".
Saltemos para 1979, ano em que Chico Buarque entrou em cena
com o projeto musical e teatral, "Ópera do Malandro" que gerou
álbum duplo, bem recebido pela crítica. A canção "Geni e o
Zeppelin" rende, até hoje, rende interpretações divergentes
sobre a personagem central. A letra é uma longa narrativa em terceira pessoa
sobre uma travesti que é “um poço de bondade” e que sofre com a ingratidão e a
hipocrisia da cidade onde vive. Contudo, foi de fato inspirada, segundo
pesquisadores da obra de Buarque, no conto Bola de Sebo, do escritor francês
Guy de Maupassant (1850-1893), considerado o principal autor de narrativas
curtas de seu país.
Na MPB, também há canções que não são literalmente versão
e nem sempre passa pelo ato de se musicar um poema. Em alguns casos,
compositores fizeram letras inspiradas também em poemas, em vez de musicá-lo. É
o caso da bela "Elegia", parceria do poeta Augusto De
Campos/ Péricles Cavalcante, que Caetano Veloso agregou ao repertório do disco
Cinema Transcendental (1979). A canção foi inspirada no poema “Elegy:
going to bed”, de John Donne (1572-1631), poeta jacobita inglês, pregador e o
maior representante dos poetas metafísicos da época.
Já na abertura da canção, muitos seguidores do artista
tropicalista imaginam ser uma de suas pérolas criativas, contudo,
de alguma forma a poética da letra faz o intercâmbio com o estilo de suas
letras: "Deixa que minha mão errante adentre atrás, na frente, em
cima, embaixo, entre/ Minha América, minha terra à vista/ Reino de paz se um
homem só a conquista/ Minha mina preciosa, meu império/ Feliz de quem penetre o
teu mistério"
Versos do poeta Fernando Pessoa (1888-1935) já entraram no
roteiro de espetáculos de Maria Bethania, intérprete de veia teatral que recita
trechos de seus autores preferidos nos shows. Versos que se encontram como numa
pororoca às canções. Em 1975, no clássico disco/show Chico Buarque e Maria
Bethania - Ao vivo, a radiante "Sonho impossível”, versão de Chico e Ruy
Guerra da canção norte-americana “The impossible dream”, de Joe Darion e Mitch
Leigh, foi gravada e lançada no espetáculo, canção que se consagrou na voz
de Maria Bethânia. Antes, a canção fez parte também da trilha sonora do
espetáculo “O homem de la mancha”, versão de Paulo Pontes e Flavio Rangel para
o musical da Broadway “Man of la mancha”, de Dale Wasserman.
A ideia surgiu a partir do poema Sonho Impossível, do poeta
português, e traz vários pontos similares à ideia original. Chico e Ruy
Guerra conclamam no seguinte trecho: "Sonhar mais um sonho impossível/ Lutar
quando é fácil ceder/Vencer o inimigo invencível/ Negar quando a regra é
vender/ Sofrer a tortura implacável/ Romper a incabível prisão/Voar num limite
provável/ Tocar o inacessível chão/É minha lei, é minha questão/ Virar este
mundo, cravar este chão".
Rock e Literatura
O roqueiro baiano Raul Seixas (1945-1989) que, em vida ganhou a
alcunha de Maluco Beleza, no auge da carreira sempre esteve antenado com a
literatura, sobretudo focada no esoterismo, além de clássicos universais. Cinco
anos antes de sua morte, Raul lançou o disco Metrô Linha 743 (1984),
décimo segundo álbum de estúdio, no qual trouxe a balada "Um messias
indeciso" cuja letra pavimenta suas ideias sobre a era cristã: "Certa
vez houve um homem comum/Como um homem qualquer/ Jogou pelada descalço/ Cresceu
e formou-se em ter fé/Mas nele havia algo estranho/Lembrava ter vivido outra
vez/Em outros mundos distantes/E assim acreditando se fez/ E acreditando em si
mesmo Tornou-se o mais sábio entre os seus/E o povo pedindo milagres/ Chamava
esse homem de Deus."
A música "Um
Messias Indeciso" teria sido composta após sua leitura do livro
"Ilusões - As aventuras de um Messias Indeciso" , do escritor
norte americano Richard Bach, mesmo autor de Fernão Campelo Gaivota. 'Ilusões'
é, para alguns críticos, um livro sobre a capacidade em acreditar, uma
filosofia de vida carregada de magia e de fé, na possibilidade que qualquer
homem tem de fazer o que quiser, sobretudo, deixando as arestas de que tudo não
passa de ilusões, um jogo de espelhos que ocultam a essência última do ser.
O livro "Os Lusíadas", de Luís Vaz de Camões -
considerado uma das maiores figuras da literatura lusófona e um dos grandes
poetas da tradição ocidental - também inspirou na década de 1980, a banda de
pop rock Legião Urbana. O líder do grupo, compositor e vocalista Renato Russo
lapidou "Monte Castelo", constituída basicamente por recortes de
Camões e da Bíblia, mas que contém a sua ideia central nas redondezas do
título. Monte Castelo é o nome de uma região ao norte da Itália, onde foi
travada a chamada Batalha de Monte Castello ao fim da segunda guerra mundial.
Outra banda ícone surgida na explosão roqueira dos anos 1980,
Paralamas do Sucesso, também fez algumas incursões a partir de ideias
literárias. Foi o que o compositor e líder da banda Herbert Vianna fez com
Lanterna dos Afogados, inspirado no livro Jubiabá, de Jorge Amado. A narrativa
escrita em 1935 é composta de contos e lendas que fazem parte do imaginário do
povo nordestino, além das histórias de marinheiros viajantes que levam uma vida
de constantes perigos.
Essas histórias educam o personagem Balduíno durante toda a
primeira e segunda parte do romance. Na letra, Herbert descreve: "Há
uma luz no túnel/ Dos desesperados/Há um cais de porto/Pra quem precisa
chegar/Eu estou na Lanterna dos Afogados/Eu estou te esperando/Vê se não vai
demorar". Em outro disco, o cantor compôs "Busca vida", com
observações centradas na obra O Pequeno Príncipe, do escritor francês
Antoine de Saint-Exupéry, que conta a história da amizade entre um homem
frustrado por ninguém compreender os seus desenhos, com um principezinho que
habita um asteróide no espaço.
Titãs, voltaram ao sucesso radiofônico em 2002 com
"Epitáfio", canção single cantada por Sérgio Britto no disco A
Melhor Banda de Todos os Tempos da Última Semana e se tornou tema da
novela Desejos de Mulher. A letra absorve a ideia de arrependimentos que uma
pessoa pode ter na vida: "devia ter amado mais", "devia ter me
importado menos, com problemas pequenos". Talvez seja a mais polêmica e
interessante das intertextualidades musicais costuradas da mesma ideia dos
versos de "Instantes", da americana Nadine Stair que escreveu: "Na verdade, bem poucas coisas levaria a
sério./Seria menos higiênico. Correria mais riscos,viajaria mais, contemplaria
mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais rios.
Coluna Do Texto ao Texto (Letras e sons) por Emanuel Andrade, jornalista, professor do curso de Jornalismo em Multimeios e Doutorando em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Trabalhou como Repórter no Jornal do Comércio e foi pioneiro no jornalismo cultural na região, ao assinar a coluna de Literatura e Música para o Gazzeta do São Francisco na década de 1990 e para rádios do Vale do São Francisco.
Arte Gráfica: Gabriela Yane, estudante de Jornalismo