A lâmina perigosa das fakes news na rotina comum no campo do jornalismo

Multiciência 08 junho 2020
Vamos falar de novo de fake news e boatos seja no jornalismo, seja na rotina de pessoas comuns?  No duelo do que é pior, quem será que perde, quem será que ganha com a indústria das falsas notícias? A revista Aventura na História publicou ano passado dez tipos de fakes que mais mataram na história considerando assuntos ligados a política, religião, ciências. Já que vivemos uma cruel pandemia do novo coronavírus que já matou milhares de pacientes pelo mundo, ao longo desses meses de isolamento (forçado ou não) diversos esclarecimentos e desmentidos foram feitos através da imprensa ou dos órgãos de saúde.
Voltemos duas décadas atrás, para lembrar um episódio fake. A polêmica em torno da vacina tríplice (caxumba, sarampo e rubéola) teve início quando o médico britânico Andrew Wakefield, um gastroenterologista, publicou um artigo no jornal Lancet, em 1998, a respeito do tratamento de crianças diagnosticadas com autismo. Wakefield afirmava que tais crianças desenvolveram o distúrbio neurológico após receberem a vacina. O médico era, na verdade, um vigarista que havia arquitetado a farsa após ser pago por um grupo que pretendia processar a indústria farmacêutica. O jornal retirou o artigo e Wakefiled foi impedido de exercer a profissão, segundo a revista "AH- Aventura na História" .

Agora mergulharemos na Idade Média. Quando a Peste Negra surgiu matando até um em cada três europeus, os judeus foram acusados de serem os responsáveis pela praga. Judeus já eram frequentemente massacrados por conta dos libelos de sangue, acusações de sacrificarem crianças em seus rituais. Como os judeus pareciam morrer menos que o resto, foram apontados como a causa, no maior libelo de todos. Acusados de envenenar poços e de serem protegidos pelo Satã, calcula-se que, no auge da Peste, 200 comunidades foram erradicadas. E os cristãos continuaram a nem fazer ideia de que os ratos eram culpados. 
Tapacurá: Viagem ao Planeta dos Boatos foi o nome que o jornalista e escritor pernambucano Homero Fonseca, batizou seu livro (pela Companhia  e Editora Cepe), para rever um série de fatos "danosos" construídos a partir de boatos que assustaram a população do Recife em 1975, quando houve uma das maiores cheias da história da capita pernambucana que matou pessoas não só pelas águas, mas também pelo susto e alarme provocados a partir das notícias mentirosas de que a barragem de Tapacurá havia estourado e iria inundar todo o centro da cidade.
Trinta e seis anos depois do boato e do pânico de 1975, o  fantasma da destruição da cidade por uma enchente catastrófica despertou o imaginário adormecido e voltou a assombrar o Recife, em maio de 2011. A rotina da cidade foi abalada pelos rumores de que uma grande enchente estaria a caminho, segundo Fonseca. Afinal, havia chovido muito além do esperado em todo Pernambuco, mais ainda na capital. O sentimento de medo voltou à cena, tanto que  escolas, universidades, repartições, escritórios e lojas, fecharam suas portas mais cedo. Tudo  sob o tensão  de uma nova onda de boatos, sem fontes concretas sobre o possível prestes a acontecer e que não aconteceu".
Como bem observa Homero Fonseca, a evidência  entre os dois eventos está na entrada em cena de novos  meios de comunicação interpessoal: telefones celulares e redes sociais na internet, onde o nome Tapacurá alcançou rapidamente a lista de trending topics - palavras mais citadas no meio virtual. Na década de 1970, segundo o jornalista, o que houve foi "um caso de pânico coletivo provocado por um alarme falso"
Mas quem disse que a história só se repete como farsa não imaginou que o homem um dia seria refém das chamadas "redes sociais" e que ferramentas como Google, Twiter, Facebook, Whatssap e seus similares podem colocar para o bem  e para o mal, o mundo inteiro na palma de uma mão. Tapacurá inundou, extravasou, mas não inundou Recife como se anunciou. O pânico matou pelo terror verbal. O Caso da Escola Infantil Base - foi outra tragédia que entra para os anais das fakes news, desta vez abraçada por grande parte da imprensa de São Paulo. Foi o estopim de uma novela da vida real com danos irreparáveis. Em 1994, duas mães acusaram os donos da escola de terem abusado sexualmente seus filhos. A imprensa mergulhou na leviana e covarde versão e, sem ouvir o outro lado, publicou o caso que teve repercussão nacional.
Resultado: Escola depredada, os donos sofreram torturas físicas e psicológicas, perderam o investimento e tiveram seus nomes e endereços divulgados nacionalmente, tudo isso sem antes de qualquer prova incriminadora. Mães acusaram, a imprensa julgou e o público praticou a justiça com as próprias mãos. Aliás, esse assunto cabe a todo estudante de comunicação jornalismo/Radialismo  tomar conhecimento através do livro Escola Base, de Emilio Coutinho (Ed. Casa Flutuante), com prefácio do jornalista Heródoto Barbeiro. 


O incêndio das notícias falsas, podemos dizer assim, tende em fração de minutos a assolar a rotina de um cidadão de bem, pode provocar estragos inimagináveis e muitas vezes concretizar danos sem volta, o que já  vimos muito na vida real. As relações pessoais podem estar comprometidas no dia a dia em poder de um simples aparelho eletrônico cujas mensagens são capazes de atravessar continentes.

Rolo Compressor  
O jornalismo, por sua vez, sobrevive na atualidade a um rolo compressor imensurável de informações ora verdadeiras, ora falsas, cabendo a um profissional vestir  todas as EPIs de ética e responsabilidade profissional para com a profissão. Vivemos tempo de transição que requer cautela redobrada. A situação se agrava na era da 'blogosfera' em que dezenas de blogs surgem sob o comando muita vezes de pessoas sem formação ou que cria sua plataforma para favorecer determinados grupos políticos ou empresarias. E vão lapidando "matérias", no varejo a toque de caixa.   
Para a premiada jornalista Eliane Brum, autora de vários livros de reportagem, a obrigação de um profissional é manter-se vigilante. "Tenho muito medo das pessoas que desfilam pelo mundo suas certezas intransponíveis. Temos de conduzir uma imensa responsabilidade com as pessoas que entrevistamos. Jornalistas como sabemos também  podem destruir. Dar conta dessa responsabilidade passa por muitas questões, uma delas é explicar claramente o que uma reportagem, uma história contada para milhares, para milhões pode causar aquela pessoa quando sua vida estiver exposta nas bancas",  observa Brum em um de seus livros.
Notícia falsa, até aqui, nessa onda de fakes, já causaram estragos a empresas, profissionais, instituições públicas e até pessoas comuns que foram agredidas publicamente na imoralidade de uma informação compartilhada com viés falso apenas na intenção de prejudicá-las. O tema já chegou a pauta da Justiça Eleitoral, mediante a avalanche de informações forjadas no trânsito de um processo eleitoral.
A velha desculpa do "só repassei" é tão arriscada como um rodízio de roleta russa. Não cabe mais falar sobre o risco das fakes news. É chover no molhado, dessa vez com montanhas de lama. É preciso também cautela do cidadão comum e responsabilidade. Os propagadores desse tipo de atitude podem tombar no horizonte da Justiça.

Coluna Do Texto ao Texto (Letras e sons) por Emanuel Andrade, jornalista, professor do curso de Jornalismo em Multimeios e Doutorando em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Trabalhou como Repórter no Jornal do Comércio e foi pioneiro no jornalismo cultural na região, ao assinar a coluna de Literatura e Música  para o Gazzeta do São Francisco na década de 1990 e para rádios do Vale do São Francisco.
Arte Gráfica: Gabriela Yane, estudante de Jornalismo