As crônicas radiofônicas e a MPB no caminho de Dom Helder

Multiciência 28 julho 2020
De abril de 1974 a abril de 1983, na Rádio Olinda, emissora da rede católica, o arcebispo Dom Helder Camara bateu ponto todos os dias da semana, exceto aos domingos, para dialogar com seus ouvintes assíduos do programa  "Um olhar sobre a cidade". Comedido, diante dos microfones, não chegou a externar todas as suas opiniões, temendo que este único espaço midiático que lhe restava também  fosse confiscado pelos censores. Ainda assim,  havia rigorosa censura do SNI e do Dops, que em vários momentos, após o programa, requisitavam cópias em fita cassete das edições para avaliar o conteúdo, ameaçando fechar a emissora, caso não se cumprissem as ordens expressas.

A cada edição, o arcebispo - no papel de comunicador- abria o programa com uma crônica. Sua voz mansa começava a ganhar  repercussão no programa que ia ao ar durante as manhãs, dando seu bom dia com o bordão "Meus queridos amigos". Ao longo dos nove anos ininterruptos de programa, foram 2.549 crônicas produzidas e lidas no ar, a maioria, com temáticas voltadas para injustiças sociais, política, religião, sentimentos e reflexões. Além de servir de material  para a memória do rádio, as crônicas revelam um Dom Helder familiarizado com os fatos da época por meio do noticiário e com a MPB politizada.

Ao longo dos programas, o religioso também abordou temáticas como arte sacra, natureza,  ecologia, poesia, tecnologias, infância e juventude. Composições clássicas da MPB, deram o mote para algumas das crônicas. Ele não  só tocou, como leu parte dos versos e teceu comentários fazendo analogia à realidade das pessoas no cotidiano, sem deixar de exprimir  referências sobre política, injustiças sociais e até mesmo observações poéticas e sentimentais.
Dom Helder e Elis Regina
Apaixonado por música clássica e brasileira autêntica, Helder tinha bom gosto. Apreciava os compositores e intérpretes da geração que eclodiu nos festivais de música do final dos anos 60, a exemplo de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Geraldo Vandré, Luiz Gonzaga, além de outros artistas que surgiram nas décadas  seguintes como Zé Geraldo e Osvaldo Montenegro que no esboço de sua arte, também lapidavam o discurso de contestação ao sistema e os problemas sociais. "Se eu perder contato com os artistas, não serei eu", costumava dizer.

Uma das canções emblemáticas dos anos 70 que Helder levou para refletir na intertextualidade do programa foi Maria, Maria (Milton Nascimento/Fernando Brant),  na crônica  "É preciso ter raça". Após os versos finais,  lembrou o Papa João Paulo II quando visitou o Recife, na década de 80: "Quando  João de Deus esteve aqui olhando nossa gente sofrida, disse: sua gente tem pouca ideologia na cabeça, mas tem muita fé no coração! Ter fé e nos transmitir coragem, esperança. e alegria de viver.

Na crônica Quem não sabe dar,  dialogou com a música "Fica Mal com Deus", de autoria do compositor paraibano Geraldo Vandré, um dos artistas perseguidos pelo regime militar que chegou a ser torturado e exilado após o AI-5. "Os poetas verdadeiros, os autênticos criadores de canção, acabam nos dando a impressão de que os poemas que eles criam e as canções que ele nos ensinam a cantar, acabam sendo um bocado nosso".

Ao final da leitura, mandou um recado no ar para o compositor:  "Geraldo, Deus gosta de quem sabe dar. Quem não sabe se tem desejo sincero de saber dar, esteja certo da ajuda de Deus. Ele chega a perfeição de ensinar a dar do modo belíssimo do ensino de Cristo: dar sem que a mão esquerda saiba o que faz a direita. Fica mal comigo quem não sabe amar? Sei que é tão infeliz quem não sabe amar, que longe de eu ficar mal com quem não sabe amar, entra de cheio nas minhas preces: que Deus que é amor, faça com que todas e todos aprendam a amar"

Na mesma época embalou uma crônica com "Agonia" de Oswaldo Montenegro. "Repare-se de início que o título já é sugestivo: Agonia". E leu os versos da canção.  "A grande agonia é ir morrendo um pouco a cada dia, a grande agonia é mesmo  fazendo de conta  que é festa, dançando e cantando, mesmo tentando contagiar diversos corações com a aparente euforia,  a amargura e o tempo vão deixando a alma vazia. A grande agonia é que mesmo anunciando sem que se perceba, a gente se encontra pra outra folia, é folia para esconder uma invencível agonia".
Chico e Helder: "Meus Queridos Amigos"
Chico Buarque foi um dos artistas que despertou o interesse do religioso por suas canções já no final dos anos 60. As canções líricas e de protesto do artista e o engajamento do arcebispo em defesa dos Direito Humanos,  aproximou os dois numa amizade que fez Buarque visitar o religioso em várias de suas turné pelo Nordeste, quando passava por Recife. Em um dos programas de rádio de abril de 1982,  Helder pescou do fundo do baú, a canção Roda Viva, classificada em terceiro lugar no III Festival de Música Popular Brasileira, ocorrido entre setembro e outubro do ano de 1967.

Na crônica, mostrou-se na intimidade ao dialogar com o cantor: "Querido Chico, em tua Roda Viva, que a gente não consegue esquecer, levanta no meio da alta poesia o problema grave e dificílimo do destino", como sugere os versos da canção: Tem dias que a gente se sente/Como quem partiu ou morreu/ A gente estancou de repente/Ou foi o mundo então que cresceu/A gente quer ter voz ativa/No nosso destino mandar(...)./

Diante da expressividade política de Roda Viva,  ele fez o desfecho  observando que "na casa do Pai não há rotina. A gente vê, ouve, vive tudo pela primeira vez".  Segundo a jornalista Tereza  Rozowykiwat,  que organizou o livro  Meus queridos amigos -  As Crônicas de Dom Helder, "havia crônicas que funcionaram como conselhos aos ouvintes quanto a situações do dia a dia, além da análise de sentimentos que podiam  engrandecer ou amesquinhar os indivíduos, bem como ele expressava seu jeito de ser, seus sonhos e sua interpretação da realidade e da natureza".

Coluna Do Texto ao Texto (Letras e sons) por Emanuel Andrade, jornalista, professor do curso de Jornalismo em Multimeios e Doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Trabalhou como Repórter no Jornal do Comércio e foi pioneiro no jornalismo cultural na região, ao assinar a coluna de Literatura e Música  para o Gazzeta do São Francisco na década de 1990 e para rádios do Vale do São Francisco.