"Narciso em Férias": Caetano Veloso dá aula de história em suas memórias de cárcere

Multiciência 15 setembro 2020

A história política e cultural do Brasil já registrou através da imprensa, livros, filmes e documentários, o trajeto dos artistas exilados no período da Ditadura Militar. Sobretudo os que foram presos sem aviso prévio, como se tivessem ficha corrida na polícia. A repressão que durou  21 anos levou uma série de artistas e líderes políticos a deixar o país em busca de segurança e liberdade. Muitos só retornariam após a Lei da Anistia, promulgada em 1979. No centro do furacão estavam Caetano Veloso e Gilberto Gil que foram se refugiar em Londres, Inglaterra.

Após ter uma série de suas composições censuradas pelo regime, em dezembro de 1968, Caetano foi preso com o parceiro do Tropicalismo, enterrando ali o movimento que sacudiu a cultura naquele período. Os músicos, em início de carreira, depois do levante dos festivais,  foram acusados, falsamente, de terem desrespeitado o hino nacional e a bandeira do Brasil. Concedida a liberdade, os baianos fizeram um show de despedida, em julho de 1969 e no outro dia partiram para o exílio, acompanhados de suas mulheres. Em Londres, se estabeleceram no bairro de Chelsea. A cidade serviu de inspiração para uma série de composições. Foi lá que Caetano gravou em tom nostálgico e pungente, o clássico disco de 1971 (A little more blue) que tem a canção "London, Lodon"  que o autor sempre declarou detestá-la,  e "Asa Branca" de Luiz Gonzaga, que ele achava mais "consumível".

A foto da capa não esconde a dor do exílio: Num close forte, o rosto se expõe depressivo com sua barba grande. O sentimento de saudade e a distância se revelam ali. Caetano  tritura detalhes do momento de sua prisão em "In the Hot Sun of a Christmas Day"( No sol quente de um dia de Natal) quando denunca que está sendo perseguido e todo mundo é cego". "Asa branca", de Luiz Gonzaga, é a única em português junto com Marinheiro Só (em inglês/português) , onde ele diz que não "vim aqui para ser feliz". E mapeia seu banzo através de um árido olhar brasileiro. Há quem possa dizer que já viu esse filme. Sim, em parte. Mas esse tenebroso capítulo da história do baiano volta à cena com novos fatos na cinematografia brasileira deste 2020 em meio a uma pandemia sem precedentes.  Caetano está pleno, agudo e certeiro com sua memória privilegiada, no filme Narciso em Férias, dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil, lançado e disponível na plataforma Globoplay desde o dia 7 de setembro, exibido na 77ª edição do Festival de Veneza. De forma coloquial e com precisão de dados, o artista reflete sobre o Brasil sacrificado pelo AI-5. Não esconde o choro ao recordar o rasgo de humanidade do sargento baiano que quebrou o protocolo militar e deixou entrar na cela a então mulher do artista, Dedé Gadelha, para que o casal pudesse se ver e se tocar sem as grades.

Em um dos momentos da conversa, o artista usa o adjetivo “desvirilizante” e se abre em gargalhada  que até poderia ser de sua irmã Irene, que o inspirou a compor naquele ano a canção batizada com o nome dela, cujo refrão diz: "Quero ver Irene dar sua risada". A narrativa recorda os 54 dias de prisão e o choro contido ocorre quando o cantor lembra que na cela recebera um exemplar da revista Manchete com reportagem e fotos sobre a Terra. São as imagens das "tais fotografias", que ele cantaria em 1978 na canção Terra (1978) do disco Muito (Dentro da estrela azulada).

Um dos motivos reais de sua prisão ficou claro quando foi questionado por um major na poeira escura da repressão. Um apresentador, chamado Randal Juliano tinha propagado em seu programa na TV Record que Caetano havia cantado em um show o "Hino Nacional" em ritmo de Tropicália, como se fizesse galhofa com a bandeira, o que nunca ocorreu.

Naquele período não faltava quem criticasse Veloso pelo modo extravagante de se vestir, pelo cabelo hippie e até seu jeito de cantar. Randal criou uma mentira que o colocou atrás das grades. "Narciso em Férias" traz novos detalhes, fatos inéditos e seus desdobramentos narrados na primeira pessoa. No meio do roteiro, comprova-se que os estragos provocados por notícia falsas não vem de hoje. O que há de novo é a popularização do termo americanizado  "fake news" sem perder a força dos prejuízos causados  à sociedade.


As memórias do cárcere na voz de Caetano Emanuel Viana Teles Veloso são revisitadas em vários instantes: "Acordei algumas noites ouvindo gritos de pessoas sendo torturadas. Fiquei apavorado!", confessa ele que chegou a pensar que seria morto. No geral, seu  discurso é coletivo em volta de todos que foram encurralados sob ordens dos militares. São fatos que reforçam parte importante do Brasil. Para os produtores do filme, "é  entender o quão necessário é se valorizar a democracia e a cultura - algo que ditaduras e sistemas reacionários detestam, vide a maneira como descreviam as canções do artista baiano."

Em uma das cenas, Caetano relê o interrogatório feito pela polícia e recentemente encontrado no arquivo da instituição, no qual é acusado de "terrorismo cultural" por ter mudado a letra do hino nacional. "Tentei me defender sem ser um traidor", disse ele para a câmera. Uma das surpresas é quando ele surge cantando "Help" (Jonh Lennon/Paul MacCartney). Um pedido de socorro que ecoou na largada e durante o regime militar. Uma aula de história, ao mesmo tempo, um aviso gigante para mostrar que ditaduras foram e sempre serão intragáveis. 



Coluna Do Texto ao Texto (Letras e sons) por Emanuel Andrade, jornalista, professor do curso de Jornalismo em Multimeios e Doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP).