No fundo do coração, eu sabia – talvez essa fosse a única coisa que meu coração sabia naquela época – que assim que eu tivesse dormido o suficiente ficaria bem. Eu me renovaria, renasceria. Seria uma pessoa totalmente nova, cada uma das minhas células se regeneraria a tal ponto que as antigas pareceriam memórias distantes encobertas pela névoa.
Há algo de comovente
na frase narrada pela protagonista do romance Meu ano de descanso e relaxamento
(Todavia, 2019), da norte-americana Ottessa Moshfegh. Ela acredita
firmemente que se passar um ano inteiro dormindo, hibernando dentro de casa,
ela esquecerá as lembranças doídas, se alienará do mundo e ficará bem.
Apesar do
método não convencional, ela não está de todo errada. Dormir é o único
comportamento que nos dá a chance de restituir nosso organismo, de reparar tanto
a nossa saúde física quanto nossa saúde emocional e mental, permitindo que
acordemos renovados para um novo dia. O equívoco da personagem está em achar
que abusando de um coquetel de remédios ela irá garantir um sono reparador que
traga serenidade e relaxamento para a sua vida.
Quando
fazemos o uso de medicamentos que induzem o sono, principalmente quando não são
prescritos por orientação médica, podemos nos tornar dependentes deles. E com
isso, deixamos de cumprir certos estágios do sono.
Durante a
noite, o cérebro humano passa por duas fases do sono: sono NREM (sem movimentos
oculares rápidos), denominado de estágios NREM 1 a 3, de profundidade crescente
e o sono REM (com movimentos oculares rápidos), descrito como o estágio dos
sonhos.
A cientista e professora do curso de medicina da Universidade do Vale do São Francisco
(UNIVASF), Bruna Del Vechio Koike, explica que, quando ficamos muito tempo em
sono NREM 2, os estágios de sono NREM 3 e REM são reduzidos, alterando toda a
arquitetura do sono.
"A
arquitetura alterada do sono não é um sono reparador. Podemos dizer que é uma
restauração falsa”. Pois, mesmo tendo realizado nossas horas de sono, ainda
assim, não passamos por todos os seus estágios, diz a pesquisadora. A não
realização de todos os estágios do sono nos impede de alcançarmos uma série de
benefícios noturnos que são garantidores de saúde.
O pesquisador britânico Matthew Walker, autor do livro “Por que nós dormirmos?”, esclarece que “cada
estágio — o sono NREM leve, o sono NREM profundo e o sono REM — oferece
benefícios cerebrais distintos em momentos distintos da noite. Desse modo, um
tipo não é mais importante do que outro. A perda de qualquer um deles causa
dano cerebral”
O neurocientista
explica que o sono NREM é essencial para o nosso aprendizado e memória. Dormir
antes do aprendizado restaura a nossa capacidade de aprender, preparando o
cérebro para gravar novas memórias. Após o aprendizado, o sono impede o
esquecimento, protegendo informações recém-adquiridas, num processo chamado de
consolidação.
Na fase de
sono REM, onde acontecem os sonhos mais vívidos, aqueles com direito a
narrativa cinematográfica, o sono onírico nos oferece uma importante terapia
noturna. Para Walker, é o sono onírico que alivia nossas lembranças dolorosas,
permitindo que possamos reviver memórias difíceis sem a bagagem dramática que
de outra forma nos deixaria paralisados.
É graças à atuação do sono REM como um
decodificador de experiências que acordamos pela manhã e conseguimos
identificar com precisão expressões faciais. É ele que calibra as regiões do
cérebro que leem e decodificam o valor e significado de sinais emocionais, principalmente
aqueles que são manifestados no rosto, diz Walker.
Outra função
que o sono REM e o ato de sonhar oferecem é o processamento inteligente da
informação que inspira a criatividade e a solução de problemas. O sono REM nos
ajuda a encontrar conexões não óbvias entre o conjunto de informações e a
processá-las de maneira mais fluida.
Foi através
de um sonho que Dmitri Mendeleiev – o criador da tabela periódica – conseguiu
organizar todos os elementos químicos conhecidos. Só depois que se rendeu a uma
noite de sono que o cérebro do químico russo foi capaz de gerar associações que
durante à luz do dia não era capaz de fazer. A sugestão de Walker é que não
fiquemos acordados sobre um problema, mas durmamos sobre ele.
Além de
todos os benefícios citados, o sono ainda calibra os nossos circuitos
emocionais, dando-nos a liberdade de enfrentar os desafios sociais e
psicológicos do dia com autocontrole – reabastece o nosso sistema inune, atua
na regulação do apetite e associa-se à boa forma do sistema cardiovascular.
No fim das
contas, a maioria de nós não precisa se dopar com remédios para alcançar um
estado de descanso e relaxamento. Só precisamos respeitar o nosso ritmo
circadiano e aproveitar a abundância de benefícios noturnos que o sono nos proporciona.
Leia também a reportagem O tempo de tela atrasa o tempo de sono.
Produzida por: Jônatas Pereira, estudante de Jornalismo em Multimeios.
Email: jonataspereiradonascimento@gmail.com
Fotos: Shutterstock