No mês da consciência negra, a Universidade do Estado da Bahia, campus Juazeiro, teve discussões acerca do racismo estrutural no Brasil.
A professora do curso de Jornalismo em Multimeios é militante do movimento negro, preside o
Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (COMPIR) e lidera projetos
com comunidades quilombolas no território Sertão do São Francisco. Márcia
Guena é uma das responsáveis pela primeira certificação quilombola de Juazeiro,
a do quilombo Alagadiço e atua também como pesquisadora no grupo
Hierarquizações étnico-raciais, Comunicação e Direitos Humanos (Rhecados).
Segundo o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2018, cerca de 56% da população brasileira se autodeclara negra, sendo inserido nesse número o índice de pretos e pardos. Contudo, a autodeclaração racial ainda é cercada de dúvidas e questionamentos.
Em entrevista à Agência MultiCiência, Márcia Guena discute a temática racial no Brasil, explicitando as dificuldades em se reconhecer negro e acessar a história dos seus ancestrais no contexto brasileiro considerando o histórico de escravização e repressão dos povos negros e indígenas. Ela comenta também a importância da implementação da lei 10.639/03 que define como obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira desde a educação fundamental até o ensino superior.
A seguir,
confira a entrevista concedida à Ariele Lima e Beatriz Azevedo.
MultiCiência: Muito se discute sobre como os livros didáticos são construídos sob um ponto de vista europeu, excluindo muitas lutas e revoluções dos povos negros e indígenas. Como você considera que isso impactou a população negra no Brasil?
Márcia Guena: Esse apagamento da história das culturas africanas e da cultura indígena já foi muito discutido pelo movimento negro. Já foi aceito pelo estado brasileiro, isso muito a partir da constituição de 1988, porque criminaliza o racismo e cria políticas públicas para reparar esses danos históricos e violentos que colocaram na marginalidade e subalternidade a população negra, hoje majoritária no país.
Nós temos os quilombos, temos as lutas urbanas de resistência negra, as resistências das mulheres nas senzalas, resistências nos terreiros de candomblé como um lugar de conforto espiritual. Lá pelo século XX. ou mesmo XIX, temos a imprensa negra que é pouco tratada nos cursos de jornalismo e que mostra como a intelectualidade negra pensava e várias outras formas de expressão como o teatro experimental negro e a Frente Negra brasileira. Houve um acúmulo de resistências, lutas e propostas. A população negra estava mobilizada mesmo dentro de uma opressão colonial muito forte, pois, mesmo após a abolição da escravatura, a população negra não foi posta dentro de um marco de cidadania. Então, para entender como isso impacta a sociedade, precisamos conhecer esse processo histórico para compreender como a identidade e a memória ancestral africana e afroindígena foram sendo solapadas em todos os momentos da história. A população negra é oprimida para esquecer e negar sua memória ancestral.
As políticas públicas têm rompido esse cerco, ainda não da maneira que a gente quer, mas tem ajudado a romper essas barreiras. Então, para que essa identidade seja naturalizada entre a população negra, sobre a importância de conhecer sua história, é importante que essas políticas públicas sejam efetivas e a escola é um dos caminhos importantes, pois esse processo não foi tranquilo e não pode ser ensinado como se fosse tranquilo.
Se formos analisar a lei 10.639/03 se estende até a faculdade,
se olharmos a ementa das disciplinas, pouquíssimas disciplinas utilizam autores
negros e indígenas. Quantos autores negros um curso de sociologia lê? Quantos
filósofos negros e indígenas um curso de filosofia lê?. Continuamos imersos
nesse epistemicídio, que é quando “assassinamos” esses conhecimentos.
MultiCiência: Como a família e pessoas próximas de
crianças negras podem contribuir com a questão da autoestima e identidade
racial dessa criança?
Márcia Guena: É difícil falar das famílias porque elas já precisam ter uma sensibilidade com a questão, uma família negra precisa se reconhecer enquanto família negra para atuar nesse sentido. Hoje, temos um grande inimigo da cultura negra no Brasil, que é o pensamento radical neopentecostal que é bastante agressivo, e nega a cultura negra.
Esse neopentecostalismo radical cresceu muito no Brasil, vide
a expressão do atual presidente, que mobiliza essas pessoas totalmente
intolerantes a outras culturas e religiões, pois não compreendem o processo
histórico dos povos negros e indígenas. Eu não generalizo para todas as áreas
dos segmentos evangélicos, mas existe um neopentecostalismo perigoso que
influencia as famílias. Os filhos que vão modificar as famílias, os filhos
negros que entram no ambiente universitário.
O que as famílias precisam fazer é trazer referências negras positivas para dentro de casa e desconstruir essa ideia de que o nosso marco é a escravidão. As novelas da Rede Globo fazem muito mal, inclusive colocando o negro sempre nesse espaço de escravizado quando na verdade já somos cineastas, cientistas e doutores. Precisam positivar a estética negra, principalmente para as meninas. As famílias têm esse poder educativo de dar segurança para seu filho negro e de construir uma pessoa inteira, o que não é fácil porque o racismo violenta e mutila psicologicamente, mas a família deve dar esse amparo. Deve deixar claro que: “Você é negro nesse mundo racista e você é uma pessoa íntegra, você é inteligente, bonito e pode conquistar muitas coisas”.
MultiCiência: No artigo “O papel da oralidade no livro-reportagem do Terreiro Ylê Asé Ayrá Onydancor”, você fala que a motivação para essa pesquisa foi fruto das ausências. Poderia falar mais um pouco do processo de elaboração do livro-reportagem e quais são essas ausências?
Márcia Guena: Basicamente porque Juazeiro é uma cidade negra. Segundo dados de 2010, temos 73% da população negra, e esse número deve se apresentar maior nesse último censo que vai sair, então, devemos ser 80% de população negra. Temos uma presença de terreiros de candomblé muito grande na cidade, terminamos um mapeamento onde foram localizados 54 terreiros de candomblé e umbanda destes 31 participaram da pesquisa. Acontece que Juazeiro, apesar de ser uma população negra, teve sua identidade muito submetida à lógica da branquitude, atribuímos um pouco disso ao coronelismo e a tradição católica forte na cidade.
Então, o que a gente percebe, é uma cidade com ausência de
expressão negra significativa na conformação da cultura das pessoas, até mesmo
nos corpos. Aqui, as pessoas negras não estão libertas com seu corpo, seu
cabelo, sua estética. Também trago muito isso porque sou de Salvador, de uma
expressão corporal que tenta se impor a essa lógica racista e Juazeiro não tem
isso, mas está construindo. Então, nos terreiros, a gente percebe essa tradição,
essa lógica do empoderamento, da preservação de uma cultura, da língua, da
ancestralidade. Os terreiros são um corpo com microcosmos ali que reproduz o
que a população negra preservou, é um espaço cultural importante. Acho que
independente de você ter uma religião ou outra, é muito interessante conhecer
os terreiros de candomblé e umbanda, porque eles guardam esses laços da nossa
ancestralidade e guardam práticas, rezas e canções. É um lugar que você vê a
herança afroindígena pulsar e com grande concentração negra. Em Juazeiro há uma
ausência na fala das pessoas da importância desses terreiros, por isso que o
livro-reportagem é sobre o Anidakon, que é o terreiro mais antigo em
funcionamento, fala disso: a ausência da
religião que guarda tanto da nossa história, da nossa cultura, das
nossas práticas, da língua, de uma forma muito intensa e a cidade não dialoga
com isso porque está regada de preconceito e de racismo religioso. O
neopentecostalismo colabora muito com isso quando ele demoniza as entidades das
religiões que não são cristãs e sempre fizeram isso conosco. Tudo negro é ruim:
o cabelo é ruim, a religião é do demônio, a cor é feia. Isso marca a
trajetória, por isso é importante que num espaço como a universidade reconheça,
estude e visibilize isso. Nós fizemos isso através do livro-reportagem e agora
estamos fazendo através da contagem dos terreiros de Juazeiro, onde a principal tecnologia que usamos é o aplicativo
Smartchico. A pessoa pode baixar no Google service. Foi criado pelo professor
Cecílio Bastos. Lá, estarão localizados os terreiros da cidade com a história,
fotografias e um podcast, o PodExu que também está no Spotify.
MultiCiência: Recentemente, tivemos uma polêmica que ainda repercute que é a autodeclaração como pardo do candidato a governador Antonio Carlos Magalhães Neto - ACM Neto, que inclusive afirmou que “na Bahia não existe branco”. A discussão acerca do tema é muito pautada pela miscigenação do país e de que parte do Brasil não faz parte do estereótipo caucasiano. Dessa forma, quem é pardo no Brasil? O que esse termo significa? É um termo que ainda deve ser usado?
Márcia Guena: O movimento negro adotou, e o IBGE incorporou que pretos e pardos são pessoas negras. Hoje, a gente tem uma estatística importante que a população negra equivale a 56% do Brasil. Nunca gostei da nomenclatura "pardo". Ela não remete a uma origem, ela é baseada na cor, vem do período colonial e não lhe atrela a sua origem ancestral africana, não lhe conecta com isso. Ela é a expressão que temos para nortear as políticas públicas, então quando entra na faculdade você pode usar essa expressão que o IBGE utiliza. É uma discussão muito delicada que a gente precisa aprofundar, mas quem é pardo no Brasil? É uma grande discussão nas comissões de heteroidentificação, o que a gente pode perceber é que o racismo no Brasil foi baseado na cor da pele, não é um racismo de origem. Não é porque eu tenho uma mãe preta que eu sou descriminada, eu sou descriminada porque eu tenho traços e fenótipos negros. A polícia mata, eu sou barrada num shopping, nas lojas, então é essa expressão fenotípica que caracteriza o barramento das pessoas negras. Aí vem a pergunta: alguma vez ACM Neto foi barrado, correu da polícia? Um dos critérios que as comissões de hetereoidentificação estão usando é a percepção social da raça. Como a sociedade olha para você? A sociedade brasileira te barra? Esse fenótipo do ACM Neto não é barrado em lugar nenhum, ele é branco no Brasil e usou de afroportunismo como a maioria dos políticos também fizeram. Digamos, na lógica do IBGE, quem é preto é retinto e quem é pardo é quem não é retinto, é um negro mais claro, mas é um negro, tem cabelo crespo, tem nariz chato. Não adianta essas pessoas brancas se colocarem como pardas, sendo que elas nunca são barradas em lugar nenhum, não sofrem racismo, não são assassinadas pela polícia. O pardo é um preto mais claro, um preto não tão retinto que tem um fenótipo negro e você vê que é uma pessoa de origem africana. Não é ele ou, como tivemos aqui em Juazeiro, uma candidata da esquerda que também se declarou parda que foi a Ellen Carvalho, ela não é parda. "Ah, mas nos Estados Unidos, ela não é branco", mas a gente não está nos Estados Unidos, nós estamos no Brasil.
MultiCiência: Há um significado imenso da tradição
oral dentro das religiões de matriz africana, mas como explicar essa
importância para os negros de outras religiões?
Márcia Guena: A tradição oral para nós está ligada à cultura africana, de como se passava o conhecimento através dos griôs, por exemplo, que eram pessoas que na comunidade eram responsáveis por contar histórias. Essa tradição vem daí. Quando falamos do período da escravidão, o conhecimento também se passava e se manteve oralmente. Os ensinamentos no terreiro é oral, não é formulado por escritos como em religiões cristãs, se aprende por meio da convivência com os mais velhos, um aprendizado lento e atencioso. É algo que faz parte da cultura negra. Óbvio que isso muda com a escolarização e o uso dos livros, que passam a fazer parte da formulação do conhecimento das religiões de matriz africana, mas não dentro dos terreiros. Nos terreiros ele é passado através dessa lógica. Como você vai passar isso pra pessoas de outras religiões eu não sei. Eu sei que eles precisam nos respeitar como nós respeitamos as outras religiões. A autora Patrícia Ricolli pode nos ajudar a pensar sobre a importância da oralidade, sem falar exatamente de religião, mas falando como a memória de mulheres negras que foi apagada, inclusive a voz, a fala, a presença pública, foi deslegitimada historicamente. A memória oral dessas mulheres negras é importante para a gente entender esse processo. O que a Patrícia Ricolli vai falar é que a gente precisa alçar essas mulheres autoras da história não só para serem escutadas, elas formulam questões sobre a vida oralmente, através de seus relatos e experiências. Elas precisam ser incorporadas a uma lógica de saber.
MultiCiência: Sabemos do lançamento do seu
novo livro "Quilombolas do Vale do São Francisco”, poderia nos contar um
pouco sobre a obra e possíveis projetos futuros?
MG: O livro é uma coletânea de artigos com várias comunidades quilombolas e várias pesquisas aqui da região. É um livro importante, é um marco, livro que consegue reunir hoje as principais pesquisas que foram feitas com comunidades quilombolas aqui da região. Quem começou a pesquisar quilombos aqui em Juazeiro, fui eu com o projeto Perfil Etnográfico. Esse é o primeiro projeto, depois a gente montou a Articulação Quilombola que reúne várias entidades, há uma representação da Univasf, defensoria pública, comunidades e uma liderança vinculada ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Então, a Articulação Quilombola continua atuando, fazendo pesquisa. Nós levamos o cursinho pré vestibular para a comunidade quilombola junto com a UNEB, e Elioteneze Batista que é o coordenador, mas antes era a articulação com a prefeitura em nosso projeto. Então, é muito importante, é o símbolo de mais de dez anos de trabalho, de reconhecimento, em que ajudamos na certificação das comunidades quilombolas.
Por: Ariele Lima e Beatriz Azevedo, estudantes de Jornalismo em Multimeios ao MultiCiência. Entrevista realizada na disciplina Introdução ao Jornalismo.
Edição Beatriz Lopes, estudante de Jornalismo em Multimeios.