Pesquisa realizada pelo Instituto Mariele Franco indica que o
Brasil ocupa a 142ª posição entre 192 países no ranking de participação
feminina na política, embora a maior parte de sua população seja formada por
mulheres.
Nesse contexto, poucas vagas no cenário político são ocupadas
pelo segmento feminino. Os
dados refletem, ainda, que é preciso haver políticas públicas pensadas
para atender mulheres, principalmente negras, de baixa renda e não cisgêneras.
Além disso, elas enfrentam violações de seus direitos como parlamentares após serem eleitas, atingindo, por vezes, a vida pessoal, como as ameaças recebidas pela vereadora Erika Hilton em março de 2022.
A professora doutora em Estudos sobre Gênero, Mulheres e Feminismo, Dalila Carla dos Santos, faz parte do corpo docente da Universidade Estadual da Bahia e desenvolve diversos trabalhos acerca das temáticas de gênero e feminismo. É militante e participante ativa de movimentos sociais, principalmente em defesa das mulheres. A professora também é estudiosa das relações de gênero presentes na representação do cangaço e em como é apresentada a identidade da mulher nordestina nestes filmes.Em entrevista com as discentes Cibelle Vieira e Bruna
Almeida, para a Agência MultiCiência, a professora discute sobre a
representação de mulheres na política. "Não basta ser mulher e estar na
política. "É preciso ter consciência enquanto mulher, classe e raça, para que
possamos trazer essas demandas e essas necessidades que os movimentos
feministas e os movimentos de mulheres colocam, inclusive para que mais
mulheres possam acessar," esclarece a
professora.
Professora Dalila Carla dos Santos. Foto: Agência MultiCiência
MultiCiência: Qual a
importância da representação feminina do poder executivo?
Dalila Carla dos Santos: Pensar as mulheres no poder executivo é
pensar a desconstrução da imagem e estereótipo do poder de tomada de decisões
ligado ao masculino e ao patriarcado. Então, é
de suma importância que a gente tenha essas figuras femininas. Temos
pouquíssimas experiências no Brasil. No poder executivo, a gente teve a Dilma
Rousseff que sofreu um golpe que teve uma
característica muito misógina que não aconteceria se fosse um homem,
principalmente se fosse o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Então, isso
é algo na nossa história que é muito marcado e que responde muito a essas
questões da necessidade de termos mulheres nesses lugares inclusive para pautar
as questões das mulheres.
A gente percebe, pincipalmente
nesse período eleitoral, que a maioria dos candidatos é integrada por homens e,
mesmo quando são mulheres, muitas não vão colocar as demandas do universo das
mulheres cis e trans nem apontar ausências, a fim de que essas faltas sejam
colocadas, virem políticas públicas, passem pela pela Câmara e pelo Senado e se
tornem leis. Então, é fundamental que a gente tenha mulheres para ir quebrando
a lógica do poder que está muito associada à figura do homem branco, de meia
idade, da classe média alta e burguesia.
MultiCiência: Diante do
movimento feminista e progressista as mulheres estão bem representadas
politicamente?
Dalila Carla dos Santos: Não, inclusive essa última eleição foi bem
preocupante porque uma bancada conservadora se colocou, com figuras que
representam essa lógica do conservadorismo e dessa ideia de família tradicional
brasileira que foge completamente da realidade exposta pelas pesquisas Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Pensando nisso, em nível municipal e estadual, nós tivemos em Pernambuco a
disputa entre duas mulheres para o governo. E o que essas mulheres representam
dentro das pautas do feminismo? Duas
mulheres brancas, que têm famílias abastadas e
que têm uma um histórico dentro da política. Então,
de que mulheres a gente está falando? Não basta ser mulher e estar na política.
É preciso ter consciência enquanto mulher, classe e raça, para que a gente
possa trazer essas demandas e essas necessidades que os movimentos feministas e
os movimentos de mulheres colocam, inclusive para que mais mulheres possam
acessar. Nós estamos falando de uma diversidade de mulheres e não é isso que a
gente acaba vendo na formação das cadeiras da
Câmara, do Senado.
MultiCiência: E na
política baiana, as mulheres estão bem representadas?
Dalila Carla dos Santos: Há dois anos, Juazeiro passou pela eleição
da primeira mulher prefeita, e isso inclusive é utilizado como um slogan, mas a
gente sabe que isso não basta e não quer dizer muita coisa. Existem vários
problemas nessa gestão, as alianças feitas para candidatura foram com homens, e
homens que já carregam um nome que tem história na política. A própria
trajetória da prefeita, que é viúva do ex-vereador Joroastro Espínola. Assim como muitas mulheres em prefeituras de cidades do
interior, há essa demanda de continuar o mandato do marido e, muitas vezes,
eles estão ali até nas peças gráficas e na comunicação, ao lado das mulheres
autorizando a candidatura. A gente teve candidatura de mulheres para Deputado
Estadual que também teve o marido, ex-prefeito que estava colocando a sua
esposa nesse lugar.
Falando do cenário baiano no
geral nós temos mulheres que representam muito bem, e que estão na política há
muito tempo, mas sinto uma necessidade de renovação. Nessa última eleição, houve uma gama muito boa de mulheres candidatas se
colocando pela primeira vez para deputada estadual e federal, mas ainda não
conseguiram acessar esses espaços, porque o sistema eleitoral e o acesso a
esses lugares ainda é algo que é muito difícil para as pessoas que estão
começando na trajetória política. Os estereótipos que marcam quem pode ocupar
uma cadeira na Assembleia Legislativa ou na Câmara, não incluem mulheres jovens, negras e de classe baixa, e
isso dificulta a inserção da juventude feminina negra na política.
MultiCiência: Existe
alguma política pública que promova a inserção das mulheres na política?
Dalila Carla dos Santos: A gente tem a questão das cotas nos
partidos, que obriga que o partido coloque 30% das suas candidaturas representatividade feminina. Foi uma luta muito grande
das mulheres. Porém, a gente observa é que, muitas delas, concorrem, para cumprir a cota, colocam o nome, mas que quem
está fazendo toda a estratégia de campanha e quem vai gerenciar esse cargo, caso
ela ganhe, é um homem ou uma equipe formada por homens.
Então, é um passo importante a gente ter essa cota de 30%, mesmo as mulheres
sendo a maioria da população e a maioria do eleitorado, mas é importante também
que a política se torne algo do universo feminino.
Historicamente, a política sempre
foi um tema voltado para homens, tanto para ser candidato quanto para votar. É
tanto que o direito ao voto para as mulheres só chega depois de uma pauta
levantada pelo movimento feminista. Pensando na história da democracia
brasileira, é tudo ainda mais recente para as mulheres. Os partidos ainda são
espaços muito masculinos - e muitas vezes, misóginos -, e as mulheres não se
sentem à vontade para construir ou entram e saem, muitas vezes por outras
demandas que estão ligadas ao feminino, as jornadas duplas, triplas, a
maternidade e todas essas questões. Então, a gente precisa de outras políticas
públicas para que as mulheres desde a juventude possam entender o que é a
política e a importância de estar nos espaços políticos e partidários,
inclusive disputar e se colocar para esse lugar.
MultiCiência: A
violência de gênero é mais significativa em
relação a mulheres ocupantes de cargos políticos?
Dalila Carla dos Santos: Não sei se ela seria mais significativa, pois enfrentamos a violência de gênero
em todos os ambientes. Por exemplo, achamos que a universidade é um espaço de
conhecimento do saber, que essas violências não existem, porém elas existem. Nesses espaços de disputa de poder, existem situações na sala de aula como professor com as alunas
dentro dos colegiados. Inclusive, há alguns casos aqui na região que já foram
para a justiça e para mídia, na qual as professoras denunciaram a questão do
assédio moral de professores. Na direção e na Reitoria, que é um lugar de
poder, e nesses espaços de poder, independente do partido, dentro das
universidades, das empresas, acaba sendo perceptível a violência de gênero.
Pensando dentro do espaço
político com o número pequeno de mulheres, e ainda essa fatiação das mulheres
entre os partidos, dificulta muito a criação de uma rede de apoio. Independente
da sua legenda partidária, mas primeiro se
reconhecendo como mulheres e isso acaba fragmentando. A partir do momento que
uma delas sofre uma violência de gênero a depender da tendência do partido, não
vai haver apoio e não vão estar ali cobrando.
Então,
a política é um cenário em que a própria inserção na política acaba sendo uma
violência de gênero, pois você excluir as mulheres desse processo, não porque
existam elementos concretos e leis que afastam as mulheres, mas porque
culturalmente esse não seria um espaço das mulheres estarem. Quando estamos
dentro dos movimentos sociais sindicais, a gente percebe os olhares, quando
levamos uma criança para esse espaço. E, no
momento da fala que é sempre uma disputa, quantas vezes as mulheres por ter um
tom de voz mais baixo não conseguem se colocar dentro de uma assembleia, ou
quantas vezes as mulheres têm uma fala, uma proposição e logo depois vem um
companheiro homem e coloca a mesma proposição de forma mais efetiva, no sentido
da voz, da entonação, e todo mundo acata e aprova.
São nessas situações minuciosas, mas que são muito determinantes e que são
violências de gênero.
MultiCiência: Nas eleições de 2022,
foram eleitas pela primeira vez duas mulheres trans para o congresso nacional.
Qual a importância das mulheres trans no congresso? Existe alguma política que
assegure a proteção delas na execução do seu dever?
Dalila
Carla dos Santos: Juntando um pouco com essa fala sobre violência de
gênero, entende-se inclusive que vai para além da questão do homem e da mulher
cis, passando para a perspectiva do masculino e do feminino. Tudo que está
relacionado ao feminino vai ser visto como menor e na política esse seria um
espaço que o feminino não deveria adentrar, seja esse feminino cis ou trans.
Para além do recorte de gênero/sexualidade, de serem mulheres trans ou
travestis, também há uma questão de etnia porque - se tratando das mulheres que
participaram do processo eleitoral - em sua maioria foram mulheres trans e
travestis que são pretas, que sabemos que têm
uma origem popular, sendo uma união da interseccionalidade, o que vai de
encontro ao conservadorismo que tem crescido no Brasil nos últimos anos.
Portanto, é importante pensar além da violência de gênero a perspectiva de
classe e raça. Sobre políticas públicas, não
encontrei nada nesse sentido além dos 30% de cotas reservadas para as mulheres.
Não sei dizer se dentro dessa cota estão mulheres trans e mulheres cis, mas sei
que ainda não existe esse foco para trans e travestis. Também há coisas do dia
a dia que dificultam muito essas relações. Lembro que quando a vereadora Léo
Kret - que foi candidata nesta eleição à deputada
federal pelo Partido Democrata Trabalhista (PDT) - foi eleita vereadora
em Salvador existiu toda uma discussão acerca do uso do banheiro: “Qual o
banheiro ela iria frequentar?”, o que trouxe à tona uma discussão muito menor
do que a inserção de uma mulher trans dentro da Câmara de Vereadores de
Salvador. Ela foi eleita como vereadora, portanto ela deveria ter acesso ao
banheiro feminino. Assim como o que ocorreu com a vereadora Erika Hilton (PSOL)
de São Paulo, sobre como o dia-a-dia dela é muito difícil porque não é só uma
questão da orientação sexual, da identidade de gênero, mas muito perpassado
pela raça, a ponto de um segurança seguir a deputada dentro do ambiente de trabalho. São situações que os
homens que se encaixam nesse papel do político não vão passar. Então, acho que
é um debate que passa por essa questão da interseccionalidade, tanto da questão
de gênero mas também de raça e classe.
MultiCiência: As cotas de 30% para
mulheres dentro dos partidos promovem equidade para mulheres pretas e
indígenas?
Dalila
Carla dos Santos: Não, o que temos hoje é a questão do orçamento para
candidaturas de pessoas pardas e negras. Estamos vivenciando, inclusive, essa
polêmica na eleição deste ano pelo candidato ao governo do estado, analisando
com qual intuito essa questão da cota de financiamento do fundo partidário
existe. A necessidade de uma cota reservada para essas pessoas existe, pois se entende que por estarem nesse lugar de
serem pardos e negros não possuem acesso igualitário aos recursos que outras
pessoas - brancas de classe média alta, da burguesia, de famílias abastadas que
inclusive estão na política há muito tempo -
possuem. Sabemos que uma campanha necessita de financiamento, sem dinheiro não
se ganha uma eleição, é preciso ter material gráfico para ir às ruas fazer
divulgação, para locomoção, para uma equipe de assessoria, é com essa
finalidade que existe o financiamento. Nessa eleição,
foi implementada a política de ter uma cota para
candidatos que se autodeclararam pardos. E então, vemos a situação do candidato
Antônio Carlos Magalhães Neto (ACM Neto), filho
de uma das famílias mais ricas do Brasil, herdeiro de um sistema de
comunicação, alguém que está na política há muitos anos se autodeclarando pela
primeira vez como pardo, o que trouxe uma questão muito polêmica.
Pensando, por exemplo, a Bahia -
Salvador é a cidade mais negra fora da África - então que representação é essa
que não dialoga com a proposta, mas se parece mais como uma manobra para
acessar essa cota financeira? Como é que ficam as pessoas que, realmente, se
encaixam na condição da cota, que não conseguiram e não conseguem acessar esse
fundo partidário? Temos essas políticas públicas, mas precisamos fomentá-las e
fiscalizá-las e não só na política. A questão das cotas é ainda muito delicada
no Brasil, apesar de estar ativa há muitos anos, por exemplo, dentro das
Universidades, mas sabemos que a política pública por si só não resolve o
problema; temos vários escândalos de pessoas que fizeram maquiagem,
bronzeamento ou Photoshop para serem contempladas por cotas de
afrodescendentes. Quando existe esse conceito da hetero-identidade, do fenótipo
e como isso é muito subjetivo, ouvimos o discurso de “Quem é negro no Brasil?”.
Todo mundo vai se colocar como pardo, mas sabemos também que há uma questão que
é social e cultural.
Então, para além da necessidade de
políticas, além de entender a importância de tê-las, precisamos das políticas
públicas, mas que elas sejam aplicadas de forma correta. É preciso ainda que
haja acompanhamento para que casos como esses e tantos outros, como em cotas
nos concursos públicos, em que pessoas negras não acessam o espaço que pessoas
brancas acabam acessando, não se tornem mais um empecilho. Isso, para que não haja o efeito contrário e continue excluindo
essas pessoas que, historicamente, foram
excluídas, entendendo, ainda, que as cotas são políticas públicas emergenciais
para haja uma equidade, tanto de gênero como de
raça e etnia.
Entrevista realizada pelas estudantes de Jornalismo em Multimeios, Cibelle Vieira e Bruna Almeida.