Dalila Carla: “Não basta ser mulher e estar na política. É preciso ter consciência enquanto mulher, classe e raça”

MultiCiência 17 dezembro 2022

Pesquisa realizada pelo Instituto Mariele Franco indica que o Brasil ocupa a 142ª posição entre 192 países no ranking de participação feminina na política, embora a maior parte de sua população seja formada por mulheres.

Nesse contexto, poucas vagas no cenário político são ocupadas pelo segmento feminino. Os dados refletem, ainda, que é preciso haver políticas públicas pensadas para atender mulheres, principalmente negras, de baixa renda e não cisgêneras.

Além disso, elas enfrentam violações de seus direitos como parlamentares após serem eleitas, atingindo, por vezes, a vida pessoal, como as ameaças recebidas pela vereadora Erika Hilton em março de 2022.

A professora doutora em Estudos sobre Gênero, Mulheres e Feminismo, Dalila Carla dos Santos, faz parte do corpo docente da Universidade Estadual da Bahia e desenvolve diversos trabalhos acerca das temáticas de gênero e feminismo. É militante e participante ativa de movimentos sociais, principalmente em defesa das mulheres. A professora também é estudiosa das relações de gênero presentes na representação do cangaço e em como é apresentada a identidade da mulher nordestina nestes filmes.


Professora  Dalila Carla dos Santos. Foto: Agência MultiCiência

Em entrevista com as discentes Cibelle Vieira e Bruna Almeida, para a Agência MultiCiência, a professora discute sobre a representação de mulheres na política. "Não basta ser mulher e estar na política. "É preciso ter consciência enquanto mulher, classe e raça, para que possamos trazer essas demandas e essas necessidades que os movimentos feministas e os movimentos de mulheres colocam, inclusive para que mais mulheres possam acessar," esclarece a professora.

 

 

Professora  Dalila Carla dos Santos. Foto: Agência MultiCiência

MultiCiência: Qual a importância da representação feminina do poder executivo?

Dalila Carla dos Santos: Pensar as mulheres no poder executivo é pensar a desconstrução da imagem e estereótipo do poder de tomada de decisões ligado ao masculino e ao patriarcado. Então, é de suma importância que a gente tenha essas figuras femininas. Temos pouquíssimas experiências no Brasil. No poder executivo, a gente teve a Dilma Rousseff que sofreu um golpe que teve uma característica muito misógina que não aconteceria se fosse um homem, principalmente se fosse o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Então, isso é algo na nossa história que é muito marcado e que responde muito a essas questões da necessidade de termos mulheres nesses lugares inclusive para pautar as questões das mulheres.

A gente percebe, pincipalmente nesse período eleitoral, que a maioria dos candidatos é integrada por homens e, mesmo quando são mulheres, muitas não vão colocar as demandas do universo das mulheres cis e trans nem apontar ausências, a fim de que essas faltas sejam colocadas, virem políticas públicas, passem pela pela Câmara e pelo Senado e se tornem leis. Então, é fundamental que a gente tenha mulheres para ir quebrando a lógica do poder que está muito associada à figura do homem branco, de meia idade, da classe média alta e burguesia.

 

 

MultiCiência: Diante do movimento feminista e progressista as mulheres estão bem representadas politicamente?

Dalila Carla dos Santos: Não, inclusive essa última eleição foi bem preocupante porque uma bancada conservadora se colocou, com figuras que representam essa lógica do conservadorismo e dessa ideia de família tradicional brasileira que foge completamente da realidade exposta pelas pesquisas Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pensando nisso, em nível municipal e estadual, nós tivemos em Pernambuco a disputa entre duas mulheres para o governo. E o que essas mulheres representam dentro das pautas do feminismo?  Duas mulheres brancas, que têm famílias abastadas e que têm uma um histórico dentro da política. Então, de que mulheres a gente está falando? Não basta ser mulher e estar na política. É preciso ter consciência enquanto mulher, classe e raça, para que a gente possa trazer essas demandas e essas necessidades que os movimentos feministas e os movimentos de mulheres colocam, inclusive para que mais mulheres possam acessar. Nós estamos falando de uma diversidade de mulheres e não é isso que a gente acaba vendo na formação das cadeiras da Câmara, do Senado.

 

MultiCiência: E na política baiana, as mulheres estão bem representadas?

Dalila Carla dos Santos: Há dois anos, Juazeiro passou pela eleição da primeira mulher prefeita, e isso inclusive é utilizado como um slogan, mas a gente sabe que isso não basta e não quer dizer muita coisa. Existem vários problemas nessa gestão, as alianças feitas para candidatura foram com homens, e homens que já carregam um nome que tem história na política. A própria trajetória da prefeita, que é viúva do ex-vereador Joroastro Espínola. Assim como muitas mulheres em prefeituras de cidades do interior, há essa demanda de continuar o mandato do marido e, muitas vezes, eles estão ali até nas peças gráficas e na comunicação, ao lado das mulheres autorizando a candidatura. A gente teve candidatura de mulheres para Deputado Estadual que também teve o marido, ex-prefeito que estava colocando a sua esposa nesse lugar.

Falando do cenário baiano no geral nós temos mulheres que representam muito bem, e que estão na política há muito tempo, mas sinto uma necessidade de renovação. Nessa última eleição, houve uma gama muito boa de mulheres candidatas se colocando pela primeira vez para deputada estadual e federal, mas ainda não conseguiram acessar esses espaços, porque o sistema eleitoral e o acesso a esses lugares ainda é algo que é muito difícil para as pessoas que estão começando na trajetória política. Os estereótipos que marcam quem pode ocupar uma cadeira na Assembleia Legislativa ou na Câmara, não incluem mulheres jovens, negras e de classe baixa, e isso dificulta a inserção da juventude feminina negra na política.

 

MultiCiência: Existe alguma política pública que promova a inserção das mulheres na política?

Dalila Carla dos Santos: A gente tem a questão das cotas nos partidos, que obriga que o partido coloque 30% das suas candidaturas representatividade feminina. Foi uma luta muito grande das mulheres. Porém, a gente observa é que, muitas delas, concorrem, para cumprir a cota, colocam o nome, mas que quem está fazendo toda a estratégia de campanha e quem vai gerenciar esse cargo, caso ela ganhe, é um homem ou uma equipe formada por homens. Então, é um passo importante a gente ter essa cota de 30%, mesmo as mulheres sendo a maioria da população e a maioria do eleitorado, mas é importante também que a política se torne algo do universo feminino.

Historicamente, a política sempre foi um tema voltado para homens, tanto para ser candidato quanto para votar. É tanto que o direito ao voto para as mulheres só chega depois de uma pauta levantada pelo movimento feminista. Pensando na história da democracia brasileira, é tudo ainda mais recente para as mulheres. Os partidos ainda são espaços muito masculinos - e muitas vezes, misóginos -, e as mulheres não se sentem à vontade para construir ou entram e saem, muitas vezes por outras demandas que estão ligadas ao feminino, as jornadas duplas, triplas, a maternidade e todas essas questões. Então, a gente precisa de outras políticas públicas para que as mulheres desde a juventude possam entender o que é a política e a importância de estar nos espaços políticos e partidários, inclusive disputar e se colocar para esse lugar.

 

MultiCiência: A violência de gênero é mais significativa em relação a mulheres ocupantes de cargos políticos?

Dalila Carla dos Santos: Não sei se ela seria mais significativa, pois enfrentamos a violência de gênero em todos os ambientes. Por exemplo, achamos que a universidade é um espaço de conhecimento do saber, que essas violências não existem, porém elas existem. Nesses espaços de disputa de poder, existem situações na sala de aula como professor com as alunas dentro dos colegiados. Inclusive, há alguns casos aqui na região que já foram para a justiça e para mídia, na qual as professoras denunciaram a questão do assédio moral de professores. Na direção e na Reitoria, que é um lugar de poder, e nesses espaços de poder, independente do partido, dentro das universidades, das empresas, acaba sendo perceptível a violência de gênero.

Pensando dentro do espaço político com o número pequeno de mulheres, e ainda essa fatiação das mulheres entre os partidos, dificulta muito a criação de uma rede de apoio. Independente da sua legenda partidária, mas primeiro se reconhecendo como mulheres e isso acaba fragmentando. A partir do momento que uma delas sofre uma violência de gênero a depender da tendência do partido, não vai haver apoio e não vão estar ali cobrando.

Então, a política é um cenário em que a própria inserção na política acaba sendo uma violência de gênero, pois você excluir as mulheres desse processo, não porque existam elementos concretos e leis que afastam as mulheres, mas porque culturalmente esse não seria um espaço das mulheres estarem. Quando estamos dentro dos movimentos sociais sindicais, a gente percebe os olhares, quando levamos uma criança para esse espaço. E, no momento da fala que é sempre uma disputa, quantas vezes as mulheres por ter um tom de voz mais baixo não conseguem se colocar dentro de uma assembleia, ou quantas vezes as mulheres têm uma fala, uma proposição e logo depois vem um companheiro homem e coloca a mesma proposição de forma mais efetiva, no sentido da voz, da entonação, e todo mundo acata e aprova. São nessas situações minuciosas, mas que são muito determinantes e que são violências de gênero.

 

MultiCiência: Nas eleições de 2022, foram eleitas pela primeira vez duas mulheres trans para o congresso nacional. Qual a importância das mulheres trans no congresso? Existe alguma política que assegure a proteção delas na execução do seu dever?

Dalila Carla dos Santos: Juntando um pouco com essa fala sobre violência de gênero, entende-se inclusive que vai para além da questão do homem e da mulher cis, passando para a perspectiva do masculino e do feminino. Tudo que está relacionado ao feminino vai ser visto como menor e na política esse seria um espaço que o feminino não deveria adentrar, seja esse feminino cis ou trans. Para além do recorte de gênero/sexualidade, de serem mulheres trans ou travestis, também há uma questão de etnia porque - se tratando das mulheres que participaram do processo eleitoral - em sua maioria foram mulheres trans e travestis que são pretas, que sabemos que têm uma origem popular, sendo uma união da interseccionalidade, o que vai de encontro ao conservadorismo que tem crescido no Brasil nos últimos anos. Portanto, é importante pensar além da violência de gênero a perspectiva de classe e raça. Sobre políticas públicas, não encontrei nada nesse sentido além dos 30% de cotas reservadas para as mulheres. Não sei dizer se dentro dessa cota estão mulheres trans e mulheres cis, mas sei que ainda não existe esse foco para trans e travestis. Também há coisas do dia a dia que dificultam muito essas relações. Lembro que quando a vereadora Léo Kret - que foi candidata nesta eleição à deputada federal pelo Partido Democrata Trabalhista (PDT) - foi eleita vereadora em Salvador existiu toda uma discussão acerca do uso do banheiro: “Qual o banheiro ela iria frequentar?”, o que trouxe à tona uma discussão muito menor do que a inserção de uma mulher trans dentro da Câmara de Vereadores de Salvador. Ela foi eleita como vereadora, portanto ela deveria ter acesso ao banheiro feminino. Assim como o que ocorreu com a vereadora Erika Hilton (PSOL) de São Paulo, sobre como o dia-a-dia dela é muito difícil porque não é só uma questão da orientação sexual, da identidade de gênero, mas muito perpassado pela raça, a ponto de um segurança seguir a deputada dentro do ambiente de trabalho. São situações que os homens que se encaixam nesse papel do político não vão passar. Então, acho que é um debate que passa por essa questão da interseccionalidade, tanto da questão de gênero mas também de raça e classe.

 

MultiCiência: As cotas de 30% para mulheres dentro dos partidos promovem equidade para mulheres pretas e indígenas?

Dalila Carla dos Santos: Não, o que temos hoje é a questão do orçamento para candidaturas de pessoas pardas e negras. Estamos vivenciando, inclusive, essa polêmica na eleição deste ano pelo candidato ao governo do estado, analisando com qual intuito essa questão da cota de financiamento do fundo partidário existe. A necessidade de uma cota reservada para essas pessoas existe, pois se entende que por estarem nesse lugar de serem pardos e negros não possuem acesso igualitário aos recursos que outras pessoas - brancas de classe média alta, da burguesia, de famílias abastadas que inclusive estão na política há muito tempo - possuem. Sabemos que uma campanha necessita de financiamento, sem dinheiro não se ganha uma eleição, é preciso ter material gráfico para ir às ruas fazer divulgação, para locomoção, para uma equipe de assessoria, é com essa finalidade que existe o financiamento. Nessa eleição, foi implementada a política de ter uma cota para candidatos que se autodeclararam pardos. E então, vemos a situação do candidato Antônio Carlos Magalhães Neto (ACM Neto), filho de uma das famílias mais ricas do Brasil, herdeiro de um sistema de comunicação, alguém que está na política há muitos anos se autodeclarando pela primeira vez como pardo, o que trouxe uma questão muito polêmica.

Pensando, por exemplo, a Bahia - Salvador é a cidade mais negra fora da África - então que representação é essa que não dialoga com a proposta, mas se parece mais como uma manobra para acessar essa cota financeira? Como é que ficam as pessoas que, realmente, se encaixam na condição da cota, que não conseguiram e não conseguem acessar esse fundo partidário? Temos essas políticas públicas, mas precisamos fomentá-las e fiscalizá-las e não só na política. A questão das cotas é ainda muito delicada no Brasil, apesar de estar ativa há muitos anos, por exemplo, dentro das Universidades, mas sabemos que a política pública por si só não resolve o problema; temos vários escândalos de pessoas que fizeram maquiagem, bronzeamento ou Photoshop para serem contempladas por cotas de afrodescendentes. Quando existe esse conceito da hetero-identidade, do fenótipo e como isso é muito subjetivo, ouvimos o discurso de “Quem é negro no Brasil?”. Todo mundo vai se colocar como pardo, mas sabemos também que há uma questão que é social e cultural.

Então, para além da necessidade de políticas, além de entender a importância de tê-las, precisamos das políticas públicas, mas que elas sejam aplicadas de forma correta. É preciso ainda que haja acompanhamento para que casos como esses e tantos outros, como em cotas nos concursos públicos, em que pessoas negras não acessam o espaço que pessoas brancas acabam acessando, não se tornem mais um empecilho. Isso, para que não haja o efeito contrário e continue excluindo essas pessoas que, historicamente, foram excluídas, entendendo, ainda, que as cotas são políticas públicas emergenciais para haja uma equidade, tanto de gênero como de raça e etnia.

Entrevista realizada pelas estudantes de Jornalismo em Multimeios, Cibelle Vieira e Bruna Almeida.