Os desafios dos estudantes trans para ter acesso à universidade pública

MultiCiência 17 maio 2023
Terminar o ensino médio é um desafio para as pessoas trans, mas ingressar no ensino superior é uma dificuldade ainda maior. A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) publicou levantamento sobre os estudantes de graduação de universidades públicas que revelou a presença - quase inexistente -  das pessoas trans nesses espaços, pois eles representam apenas 0,2% da totalidade de discentes. Dados da Andifes indicam ainda que, das 63 universidades brasileiras, 14 delas não têm resolução interna a respeito do direito ao nome social - modo como pessoas transexuais e travestis se autoidentificam e são reconhecidas.  

Aliado à falta de dados sobre o número exato de pessoas trans no espaço acadêmico e a baixa expectativa de vida, durante a formação no ensino básico a evasão escolar de pessoas trans é muito corriqueira em consequência do desrespeito à identidade de gênero. De acordo com levantamento feito pela Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil, 82% das pessoas trans deixam o ensino médio entre 14 e 18 anos.

Ágatha Sofhia Oliveira é uma estudante que superou essa estatística. Aluna do curso de pedagogia na Universidade do Estado da Bahia, em Juazeiro, ela concluiu o ensino médio e foi aprovada no ensino superior pelas cotas para pessoas transsexuais e travestis. Apesar da conquista, ela teve seu direito cerceado antes mesmo de passar pelos portões do campus. Ágatha teve sua matrícula reprovada duas vezes pela universidade. “Quando estava prestes a entrar com processo judicial contra a instituição, recebi uma ligação da secretaria acadêmica, afirmando que eu tinha sido aprovada, que tinha sido um erro deles aqui dentro. Isso me causou um constrangimento.”

                                    Ágatha Sofhia é estudante de Pedagogia do DCH IIII.
                                                         Foto: Yanne Carolina 

A UNEB adotou cotas para estudantes transgêneros, travestis, transexuais no ano de 2019, sendo disponibilizadas 5% das vagas adicionais. Ágatha enxerga as cotas para pessoas trans como uma forma de garantir os direitos educacionais, pois o alto índice de evasão e inconclusão do ensino médio por pessoas trans diminui drasticamente a inclusão da comunidade no ensino superior. “É muito difícil a nossa subsistência, a nossa existência, e a universidade mantendo essa política pública e aumentando o número de vagas, de duas para seis, nos dá a possibilidade de ser alguém na vida, de realizar o nosso sonho. De ter o nosso lugar ao sol enquanto cidadã, enquanto cidadão, ter acesso ao nosso direito.”, enfatiza.

Apesar da UNEB destinar 5% das vagas adicionais na instituição, no Departamento de Ciências Humanas, campus III, existem apenas duas pessoas trans no curso de Pedagogia, e nenhuma em Jornalismo em Multimeios.  

Estudante de Direito do Departamento de Tecnologias e Ciências Sociais, da UNEB, Eduardo Príncipe de Lira Rocha, considera que as cotas são uma forma de reparação histórica de uma política de violência contra a população trans. “É menos uma barreira para a população trans superar, porque, para além de ser trans, tenho uma casa para sustentar, um aluguel para pagar. Então, não sei se seria uma força dobrada. Não tem como medir isso, mas sinto uma diferença muito grande. As cotas elas vêm para dar possibilidade, para fazer uma reparação histórica.”

Luta para assegurar os Direitos 

Karlos Victor da Silva Ferreira foi o primeiro homem trans a ingressar na UNEB, em Juazeiro, através da política de cotas, em 2019. Estudante do 7º período de pedagogia, ele entende o significado da inserção de pessoas trans no ensino superior. “Quando cheguei na universidade, olhava ao redor e pensava, ‘velho, só tem eu de pessoa trans, de homem trans, aqui nesse campus’. Foi bom ser o primeiro, mas eu não queria ser o primeiro. Queria que fosse um número disputado por várias pessoas.”

Karlos Victor teve direito ao nome social exposto pela instituição. 
Foto: Yanne Carolina 


Mesmo tendo garantido a vaga através das cotas, Karlos teve seu direito ao nome social invalidado pela instituição ao ter o nome de batismo exposto no sistema da universidade. “Fiquei triste por muito tempo, me afastei de algumas disciplinas. Acho que quando a gente luta tanto para ter um nome respeitado e vemos que dentro da universidade, onde deveria ter todo esse amparo, seu nome é escancarado, um nome morto. Isso me entristeceu muito”. 

Àgatha está no 2º período do curso de pedagogia e afirma não se sentir acolhida como uma mulher trans dentro na universidade. Para ela, a falta de representatividade trans na UNEB torna a convivência, com alguns colegas e professores, mais difícil. “O convívio dentro da universidade, enquanto pessoa trans não é muito fácil. Mesmo eu sendo Ágatha Sofhia, o professor olha pra mim, me chama de 'Ele' e eu tenho que está’ toda hora dizendo ‘professor não sou ele, eu sou Ela', expõe. 

Vale destacar que o nome social é um direito humano fundamental garantido pela Constituição Federal de 1988 e reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2016, pelo decreto Nº 8.727.

Diálogo na promoção da diversidade

Para Eduardo, que já vivenciou inúmeras violências dentro e fora da universidade, o caminho para combater o preconceito e proporcionar a permanência da comunidade trans no ambiente acadêmico é a informação.

Eduardo Lira Rocha defende a informação como instrumento para assegurar os direitos 

Para ele, o diálogo assume papel importante no combate à desinformação e aos estigmas associados à comunidade LGBTQIAP+, em geral, e principalmente às pessoas trans. “As pessoas pensam que a gente é de outro mundo. É como quando você está em um zoológico e sempre tem um animal mais exótico. As pessoas tratam a gente assim, botando a gente muito fora da realidade. Então, o diálogo traz a verdade”.

Assim como Eduardo, Ágatha acredita que a comunicação é um meio de gerar entendimento, dos profissionais e alunos, das diversidades existentes no ambiente acadêmico. Para a aluna, aprender a conviver com as diferenças, sejam de gênero, cor, credo, é fundamental para a permanência estudantil dentro da universidade. Karlos também acredita que a informação é o meio para vencer o preconceito, mas admite que a inserção de políticas públicas voltadas diretamente para o auxílio de pessoas trans seria um divisor de águas para a comunidade dentro da UNEB.

Dificuldades no mercado de trabalho

Além dos problemas enfrentados na universidade, pessoas trans também sofrem preconceitos ao se inserirem no mercado de trabalho. Ainda que aptos a exercer a função, a falta de conhecimento dos direitos da população interfere na contratação desses profissionais.

Eduardo vivenciou uma dessas situações em 2021. Ele havia sido contratado por uma empresa, em Juazeiro, foi demitido por mensagem quatro dias depois, porque o empregador disse não saber “da sua condição” e que já “tinha a cota para pessoas trans” preenchida.

                                        Mensagem recebida por Eduardo Príncipe de Lira Rocha

Eduardo espera que episódios como esse não se repitam depois de conseguir o diploma. “Eu tenho esse trauma. Esse foi o único que eu consegui provar a transfobia escancarada, mas no geral foram várias situações. Então eu não sei como vai ser o mercado de trabalho, mas eu sei que eu vou está mais forte, mais confiante e vou ter um direcionamento. Eu estudei pra isso”.

Ágatha e Karlos também têm esperança de que o mercado irá olha-los profissionalmente, para além dos preconceitos existentes na sociedade. “Eu espero que o mercado de trabalho me absorva enquanto profissional. E saiba dar proveito aos conhecimentos que estou recebendo aqui na universidade, que eu possa ser uma boa profissional. Vista como professora, como educadora”, deseja Ágatha.

A construção de uma sociedade que respeita as diferenças começa com mudança de atitudes por cada um de nós. Para isso, conheça termos importantes relacionados à diversidade de gênero

Identidade de gênero: É a forma que a pessoa se entende como um indivíduo social, ou seja, a percepção de si.

Expressão de gênero: É como a pessoa manifesta sua identidade em público, a forma como se veste, sua aparência (corte de cabelo, por exemplo) e comportamento, independentemente do sexo biológico.

Sexualidade: Está relacionada à genética binária em que a pessoa nasceu: masculino, feminino e intersexual.

Orientação sexual: Tem a ver com a prática de se relacionar afetiva e/ou sexualmente com outros gêneros. Em um ciclo natural, essa descoberta acontece entre a infância e o início da adolescência, mas, por preconceito e discriminação, ela pode ser bloqueada e até mesmo negada, estendendo-se para a fase adulta.

Transgênero: termo “guarda-chuva” que representa a diversidade trans. Estão incluídos travestis, homens e mulheres trans, pessoas transmasculinas, não binárias e diversos outros;

Travesti e transexual: ambos os termos se referem às pessoas cujo gênero é o oposto do que lhe foi socialmente atribuído ao nascer. Contudo, havia diferenciação dos termos nos debates iniciais, considerando questões cirúrgicas. O pensamento é considerado ultrapassado pela comunidade, pois a identificação é individual, não havendo distinção;

Pessoas não binárias: não se identificam exclusivamente com o gênero feminino ou masculino, indo além do binômio homem-mulher;

Cisgênero: indivíduo que se identifica com o gênero que lhe foi atribuído no nascimento;
Transfobia: Aversão e preconceito contra indivíduos transgêneros;

LGBTQIAP+: a sigla refere-se a Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queers, Assexuais, Pansexuais e Identidades Não Binárias;

Queer: forma fluída de se representar em termos de gênero e sexualidade;
Assexuais: indivíduos que têm relações afetivas sem necessariamente ter relações sexuais;

Pansexuais: pessoas atraídas por diferentes gêneros.

Glossário retirado do Portal Extraclasse

Quer conhecer a pesquisa da Andifes com o perfil dos graduandos das instituições federais, leia aqui.

Reportagem especial produzida por Yanne Carolina, estudante de Jornalismo em Multimeios para a disciplina Redação Jornalistica II.

Edição: Túlio Oliveira e Andréa Cristiana Santos