Canal do Projeto de Integração do Rio São Francisco em Cabrobó, PE. |
A primeira vez em que se falou na transposição do Rio
São Francisco data dos tempos de Império, quando o Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838, propôs a construção de um sistema que levasse a água do rio São Francisco
para o rio Jaguaribe, no Ceará, como estratégia para combater a seca. Desde então, a transposição ganhou força
durante o governo Luís Inácio Lula da Silva, com base em projeto elaborado no
governo de Fernando Henrique Cardoso.
Idealizado como a maior obra de infraestrutura
hídrica do país, o Projeto de Integração do Rio São Francisco possui 477
quilômetros de extensão em dois eixos, leste e norte, e promete levar água a
cerca de 12 milhões de pessoas em 390 municípios nos estados de Pernambuco,
Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba. A primeira etapa – o eixo leste, quevai conduzir a água ao semiárido paraibano,
já foi concluída. A previsão é de que o eixo norte esteja pronto até o segundo
semestre deste ano.
Apesar das denúncias de corrupção que
envolvem a obra, pouco se discute a respeito de seus impactos ambientais. O
Relatório de Impacto Ambiental
(RIMA), do Ministério da Integração Nacional, comprovou que o empreendimento pode
trazer consequências como a redução da cobertura vegetal, a extinção de algumas
espécies raras e ameaçadas e a alteração na comunidade vegetal.
Para
executar um projeto dessa dimensão, que envolve uma série de impactos
ambientais e socioeconômicos, é necessário caracterizar os efeitos da obra no
bioma caatinga, já que a maior parte do empreendimento ocupa áreas
predominantes dessa vegetação. O Ministério da
Integração Nacional investiu em 38 programas que pesquisam os aspectos
relacionados à transposição, que são desenvolvidos por pesquisadores
de diversas instituições. Dois deles são o
Programa de Conservação de Fauna e Flora – PBA 23 e o Programa deRecuperação de Áreas Degradadas – PBA 09, executados pelo Núcleo de
Ecologia e Monitoramento Ambiental (NEMA) na Universidade Federal do Vale do
São Francisco, em Petrolina (PE).
Para monitorar a cobertura, composição e diversidade
vegetal nas áreas atingidas pela obra, o NEMA realiza uma série de ações, que vão desde o resgate de plantas
vivas da área do projeto à doação de sementes para recomposição ambiental. De acordo com Renato Garcia
Rodrigues, biólogo e coordenador do NEMA, já são oito anos de trabalho em uma
área de 6 milhões de hectares, que cobre, prioritariamente, os municípios
próximos aos canais da transposição.
![]() |
Eixos norte e leste do Projeto de Integração do Rio São Francisco. Foto: Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), 2004. |
Uma das ações de monitoramento é o inventário
florístico, criado para identificar as espécies de plantas que estão no local. As
sementes das plantas coletadas compõem um banco de sementes que,
posteriormente, podem ser doadas para viveiristas e pesquisadores. Segundo
Renato, são coletadas plantas de valor econômico, de uso para recuperação de
áreas degradadas, espécies raras e ameaçadas de extinção. Em seguida, essas
plantas são recolocadas nos locais onde a obra já foi concluída.
Áreas Degradadas
À medida que a obra avança para as áreas dos eixos
norte e leste, é possível identificar o aumento de áreas degradadas, que sofreram,
em algum grau, impactos em sua integridade, sejam elas de natureza física,
química ou biológica. Tem-se notado, também, o aumento de processos erosivos e
de sedimentos oriundos das escavações e movimentações de terra.
O Programa de Recuperação de Áreas Degradadas – PBA
09, também executado pelo NEMA, foi desenvolvido com a finalidade de evitar a expansão do processo de erosão e o comprometimento dos canais de água, assim como
possibilitar a retomada do uso original ou alternativo das áreas onde haverá
intervenção construtiva. O PBA prevê a recomposição da paisagem original tanto
quanto possível, considerando as características do bioma caatinga.
O NEMA monitora a diversidade vegetal, observando se
a construção da obra está afetando a comunidade de plantas como um todo e se o
desmatamento está mudando a dinâmica populacional. Já foram desenvolvidos modelos de recuperação por pesquisadores do núcleo. “Temos duas áreas de teste
onde aplicamos esses modelos. A ideia é que sejam projetos de baixo custo,
baixa manutenção, e que possam ser replicáveis, funcionando em todas as
condições”, explica Renato, que coordena os projetos de pesquisa junto com bolsistas de iniciação e de mestrado.
De acordo com Renato, já estão sendo recuperados 196
hectares na área da transposição desde 2016. Até 2018, esse valor pode ser
duplicado até alcançar a extensão inteira da obra em 2020. No entanto, algumas
dificuldades já foram constatadas pelos pesquisadores. Para evitar a erosão, são
plantadas espécies herbáceas para revegetar a área, mas o solo está amplamente
degradado e a falta de chuvas tem prejudicado as atividades de recuperação.
Banco de sementes do Núcleo de Ecologia e Monitoramento Ambiental (NEMA) da Univasf. |
Conservação da Fauna
Outra atividade prevista pelo PBA-23 é a conservação
da fauna. O Ministério da Integração prevê como impactos negativos do
empreendimento alterações na biota aquática e terrestre, fragmentação da vegetação nativa, particularmente das
caatingas arbórea e arbustiva-densa e aumento da pressão antrópica sobre a biota
com a expansão da fronteira agrícola e urbana devido ao aumento da
disponibilidade de água.
O Centro de Manejo de Fauna da Caatinga (Cemafauna)
da Universidade Federal do Vale do São Francisco, em Petrolina, é responsável
por sete dos subprogramas do PBA-23, todos relacionados à fauna da Caatinga. Segundo o PBA-23, a seleção dos grupos de animais a serem
monitorados se baseou em critérios como alta potencialidade como elemento
impactado, importância na cadeia alimentar, boa sensibilidade como indicador de
qualidade ambiental e relação com o empreendimento.
![]() |
Resgate de animais no reservatório Copiti, em Custódia, PE. Foto: Arquivo Cemafauna. |
Coordenador do Cemafauna, o professor Luiz Pereira destaca as atividades de resgate e monitoramento de espécies de animais raras e ameaçadas nas áreas do Projeto de Integração. “Estamos atuando diretamente com as empresas que fazem a supressão da vegetação. Observamos se tem animais nessa área, e nesse processo muitos bichos de pequeno porte estão no caminho da obra. Nosso papel é resgatar esses animais, mitigando os impactos do projeto”. Ainda de acordo com ele, o monitoramento é feito através de 37 pontos ao longo dos canais, onde são observadas quais espécies estão migrando por causa da transposição. “Monitoramos todas as espécies que estão saindo e indo pra outra bacia e também analisamos o seu material genético, para observar se, no futuro, a diversidade genética desses animais aumenta”, relata.
Além disso, de acordo com o Ministério
da Integração, em uma região onde a água é um fator limitante e exerce controle
importante sobre a sazonalidade da fauna e da flora, redirecionar parte do
fluxo d’água do rio São Francisco para regiões críticas pode gerar as mais diversas
modificações no ecossistema local. “Com os reservatórios, pode haver
deslocamento de espécies de animais para beber água, e esses bichos vão ficar
expostos à caça, o que pode agravar os riscos de extinção dessas espécies,” explica
Pereira.
![]() |
Na orla de Petrolina, ações como a retirada das baronesas localizadas nas margens do rio tem sido realizadas pela prefeitura local. |
O estado atual do Rio São Francisco é preocupante e
revela o descaso da população com um de seus bens mais preciosos. Poluição
urbana, devastação da mata ciliar, assoreamento e a má gestão dos múltiplos
usos de suas águas são alguns exemplos dos impactos ambientais causados,
sobretudo, pela ação humana.
O termo “revitalização” corresponde à recuperação
ambiental de áreas degradadas, a preservação de ecossistemas e a promoção do
desenvolvimento sociocultural das populações que ali vivem. O Ministério da
Integração Nacional desenvolveu um Programa com esse objetivo em relatório de
impacto ambiental em função da transposição das águas do rio.
As mudanças ambientais no ecossistema do rio demandam
uma série de ações a longo prazo, que possam gerar mudanças em larga escala.
Atento a esses problemas, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco
(CBHSF) defende a revitalização do Velho Chico. O órgão se divide em quatro
Câmaras Consultivas Regionais (CCRs) que correspondem às quatro regiões
fisiográficas do São Francisco: alto, médio, submédio e baixo. Localizada na
região do Submédio, Petrolina conta com uma sede do Comitê. De acordo com
Julianeli Tolentino de Lima, coordenador do CCR Submédio e também Reitor da
Universidade do Vale do São Francisco, o colegiado tem dialogado com as
comunidades da região. Pescadores, associações de transportadores fluviais,
irrigantes e pessoas da indústria e comércio participam diretamente da gestão,
identificando problemas e situações que visam a melhoria das condições ambientais
relacionadas ao rio.
“Temos o papel de ouvir as propostas das comunidades e, se for viável, possibilitar a execução delas”, explica o professor Julianeli Tolentino. Foto: Ilanna Barbosa. |
Ações de
revitalização executadas pelo Comitê como a proteção de nascentes e de áreas de
preservação têm sido realizadas. Julianelli afirma que são desenvolvidos projetos de recomposição da mata
ciliar, com plantio de espécies nativas e obras de saneamento, não só no polo Juazeiro e Petrolina, mas em toda área de abrangência
do comitê. Em diversos pontos da bacia, são
implantados projetos de recuperação hidroambiental, a exemplo da Bacia do Rio Salitre, em Morro do Chapéu, na Bahia, com recursos financeiros provenientes da cobrança pela captação de água do rio, repassado pela Agência
Nacional de Águas (ANA).
Talvez o problema mais visível encontrado no rio, a
poluição das margens e o esgoto jogado in natura revelam a precarização do
saneamento básico na região. Petrolina já é conhecida por ter parte de seu
esgoto lançado diretamente no rio, mas isso também pode ser visto em Juazeiro.
Estudantes do curso de Jornalismo em Multimeios, da Universidade do Estado da Bahia
denunciaram a degradação na cidade baiana através de um curta-metragem na disciplina Tópicos Especiais em Comunicação.
As ações de saneamento têm sido cobradas por toda a
sociedade local. A falta de políticas públicas fundamentais à garantia de
higiene e saúde da população já chama a atenção das prefeituras, que prometem
dar prioridade à problemática. A Lei Nacional de Saneamento Básico, nº
11.445/2007, determina que sejam efetivados ações para implantar serviços públicos de abastecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem e
manejo de águas pluviais, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos. “O Comitê lança anualmente chamadas públicas onde
os municípios, através das prefeituras, podem concorrer para que os projetos de
saneamento sejam executados no município, contribuindo para a preservação do
rio e evitando alguns danos, como o lançamento de esgotos às margens do São
Francisco”, explica Julianelli. De acordo com o CBHSF, seis municípios da região do
Submédio receberam ou recebem investimentos em saneamento básico: Pesqueira,
Flores e Afogados da Ingazeira, em Pernambuco; e Jacobina, Miguel Calmon e
Mirangaba, na Bahia.
Apesar dos avanços a passos lentos, é preciso
reconhecer que ainda há muito a ser feito. Mesmo com o cenário desfavorável, discutir os impactos ambientais e implantar soluções para os problemas é mais do que necessário para manter a esperança de que,
mesmo em situações adversas, o rio sobreviva.
____________________
Texto e fotos: George Lôla, estagiário da Agência de Notícias Multiciência. Projeto desenvolvido na disciplina Estágio Supervisionado II, do curso de Jornalismo em Multimeios, UNEB.