O Poço desvenda que não existe solidariedade espontânea

Multiciência 14 abril 2020
O filósofo Thomas Hobbes costumava dizer que “O homem é o lobo do próprio homem”. Para o autor de Leviatã, o ser humano é egoísta e mau, e compete à sociedade contornar isso, através do contrato social. Esse debate também pode ser visto na trama de O Poço, que está há semanas entre os filmes mais vistos no Brasil na Netflix, demandando fôlego e atenção de quem o assiste. Em tempos de isolamento social para este período de pandemia, o filme traz reflexões sobre desigualdade social.

Dirigido pelo espanhol Galder Gaztelu-Urrutia, o longa metragem alterna conversas filosóficas e cenas de extrema violência. Situado no interior de uma prisão vertical, os presos se referem ao lugar por um título evocativo: O Poço. O filme é protagonizado por Goreng (Ivan Massagué), que optou por entrar na instalação por seis meses com o intuito de parar de fumar e receber um diploma credenciado, enquanto tenta sobreviver sem perder o senso de decência.

Todos os dias, um banquete é apresentado em uma mesa retangular que estará disponível a cada prisioneiro, desde que todos se alimentem apenas do necessário para aquele dia.  Há comida supostamente suficiente para todos, desde que houvesse solidariedade espontânea. No momento em que chega na prisão, ele conhece o companheiro, o velho Trimagasi (Zorion Eguileor). Há meses na prisão, o ancião explica para o jovem que: “Existem três tipos de pessoas. As de cima, as de baixo e as que caem”.

Foto: Cineclik
No cotidiano, cada pessoa espera ansiosamente a chegada do banquete ou o que sobra dele. As pessoas estão assujeitadas ao sistema e são aleatoriamente transferidas para novos níveis uma vez por mês, no contexto de violência extrema para sobreviver a escassez, manter a sanidade mental ou ser premiado com o melhor do banquete.

O longa metragem mostra um retrato brutal de um sistema que promove competição e interesse próprio, pois a única ação possível seria fazer o racionamento dos alimentos.  Como afirma Goreng, "é mais justo racionar a comida" como estratégia de sobrevivência para todos.  "Algo que promova um senso espontâneo de solidariedade”, diz. Nem que para isso seja necessário causar a revolta social.

Nesse sentido, O Poço reflete sobre a dinâmica econômica estabelecido da vida real e, mesmo em condições impossíveis, os seres humanos têm responsabilidade bilateral – independentemente se será beneficiado pelas suas próprias ações.  O filme retrata a avareza e desespero em resposta à violência da estrutura prisional e a escassez de alimentos.

Nisto, podemos fazer analogia com a realidade vista desde a eclosão da pandemia do Covid-19, em um momento em que os estados estão competindo por respiradores, pessoas em pânico deixaram as prateleiras vazias, vendedores superfaturando o preço do álcool em gel. Farmácias sem estoque de máscaras para aqueles que de fato precisam delas. Esse é o reflexo da sociedade agora, na qual alguns poucos seletos - as elites - podem determinar a sobrevivência ou excluir socialmente gerações.

O Poço traz questões para examinar a sociedade e o que podemos fazer para estabelecer a solidariedade entre as pessoas. O enredo não oferece respostas fáceis ou argumentos morais simples, pelo contrário traz questões emblemáticas de como nós todos enfrentamos situações extremadas, seja de sobrevivência ou convivência entre iguais e diferentes. A escolha é ética, é humana.

Para assistir o filme, acesse Netflix.

Texto por:  Kassia Emanuela é estudante de Jornalismo em Multimeios e colaboradora do MultiCiência.
Foto 1: Observatório do Cinema