Entre esses grupos vulneráveis, estão os artistas das mais diversas linguagens – o que não é novidade, mas que ainda é tema de pouca reflexão para aqueles de fora dos circuitos da arte. Assim como o sistema de saúde, o sistema das artes colapsou. E para completar nosso assombro, as iniciativas dos gestores culturais, sejam eles privados ou públicos, ainda parecem tímidas, o que se explica pelas novas prioridades que se desenham, na vida do cidadão comum, no contexto de uma pandemia – consumir arte não está entre essas prioridades. Aqui, nenhuma comparação com países tido como desenvolvidos é possível, em uma sociedade como a nossa, que viu, nos últimos anos, a escalada da censura e do corte de verbas chegar à extinção do Ministério da Cultura e à redução de sua pasta a ocupantes aleatórios e ao esvaziamento.
Enquanto escrevo, o projeto de lei Aldir Blanc, que prevê o auxílio para os trabalhadores da cultura, depois de ter passado pela Câmara e pelo Senado, está às vésperas de ser sancionado por aquele que está no cargo da presidência da República, restando a dúvida se quem sempre atacou a produção cultural aprovará que se lhe destine verba pública com respeito à liberdade de expressão e ao direito universal que todos têm de acessar os bens culturais.
Os editais têm se mostrado brutalmente emergenciais, numa delicada negociação que passa pelos valores a serem destinados para cada artista ou grupo, pelo formato da produção a ser submetida (parafraseando Mallarmé, tudo existe para terminar em vídeo?), pela abrangência geográfica de um processo de descentralização e interiorização que não se completou, e pelos prazos, especialmente quando se pondera o caso daqueles que, há três meses já, perderam seus públicos, sua renda, sua perspectiva. Além disso, ainda que as agências atentem para a incluir as variáveis de classe, de cor, de gênero, de diversidade de corpos, não sabemos se, por seu turno, esses indivíduos estão conseguindo pagar os boletos para manter sua conexão com a internet.
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Obra expressionista alemão O Grito. de Edvard Munch, 1893. |
Os artistas cuja expressão se centra diretamente no corpo – dançarinos, atores, capoeiristas, performers, artistas circenses – parecem os mais atingidos. Para quem busca chegar à forma minimamente aprimorada, nessas linguagens, quem agora define a diferença entre o ensaio e o definitivo são os ritmos da câmera, da edição, da mediação, da conexão e mesmo do delay. Na falta do olhar e do ouvir diretos do público, de sua energia e de sua interação também diretamente física e imediata, o próprio conceito de presença é recomposto, a duras penas.
Há um tempo atrás, certos setores das artes visuais proclamavam sua desmaterialização, sua redução ao conceito, ao gesto, ao puro símbolo. Mas eis que não nos sentimos completamente à vontade em estar apenas nas nuvens, quando isso não é somente uma escolha e quando, mesmo que ainda se tome isso como escolha, já não há a certeza de um público. O desconforto é maior, quando lembramos que essas mesmas artes visuais vinham redescobrindo sua carnalidade, dentro de e para além dos cânones ocidentais, seu compromisso com forças sociais de estratos diversos. Ainda teremos de verificar o quanto os públicos, também eles heterogêneos frequentam as exposições que se tornaram virtuais, quando se sabe que o cubo branco já sofria seus abalos, e não era de hoje.
Ironia estética: na crise das demais linguagens, a música segue como a mais tolerável de se consumir; na impossibilidade de Apolo, Dioniso canta nos mais diversos gêneros, embriaga na sofrência, embala a tragédia da política, o choro da falta de celebração do São João no Nordeste, o caos de nossa desorientação, o luto pela cifra crescente de mortos que têm nome para quem os amava.
Há pouco pensávamos que a internet franquearia o acesso à informação, à liberdade de expressão e de opinião. Mas eis que vieram as fake news, esse fenômeno empresarial da história política recente, a cultura do ódio, da destruição de reputações, do cancelamento, do ataque virtual, numa sociedade que levou sua herança mais agressiva da oralidade ao mundo escrito, desde a época do Orkut. Parece que a internet não é bem uma praça democrática. E isso é decisivo para a forma e o conteúdo do que os artistas pretendem veicular.
Também se abateu sobre nós a percepção de que entre o mundo real, as nossas bolhas sociais e a internet há muito mais camadas do que julgam nossos vãos perfis de redes sociais. Entre essas camadas, a falta de acesso, e mesmo de manejo, dos dispositivos tecnológicos, das ferramentas das redes sociais, dos códigos próprios de cada plataforma, em constante atualização.
Enquanto não sabemos se a live se tornará o principal entretenimento, e honestamente esperamos que não, são essas transmissões ao vivo, de corpos vivos atrás da tela para outros corpos vivos espectadores, que lembram aos corpos que ainda não sucumbiram que há uma vida pela qual vale a pena viver.
Um sinal para os artistas: atuem em coletivo, na medida do possível do isolamento social. É mais estratégico, amortece os impactos, divide tarefas. Outra: também com apoio coletivo, procurem a todo custo formalizar seu trabalho, desde o registro de documentos até a aquisição de expertise, da câmera emprestada do colega, da escrita e da revisão de outro colega, de uma orientação sobre orçamentos, tabelas, cronogramas. Por difícil que pareça entrever esperança, as formas de linguagem do futuro ainda estão em suas mãos.
Texto por Elson Rabelo, historiador, professor do curso de Artes Visuais da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) e pesquisador colaborador do Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Email: elson_rabelo@hotmail.com