Em 14 de setembro de 1833, o tipógrafo Francisco de Paula Brito fundava, no Rio de Janeiro, o jornal “O Homem de Côr”, conhecido também como “O Mulato”, que lutava pela abolição da escravidão no Brasil. Pioneiro na imprensa negra do país, O Homem de Côr foi a inspiração para criação dos periódicos Brasileiro Pardo e o Lafuente, lançados cerca de dois meses depois.
Cento e noventa anos depois, a imprensa negra no país promove uma comunicação contra-hegemônica, em um país dominado por conglomerados de mídia, geralmente administrados por famílias com passado colonialista. Segundo pesquisa feita pelo Media Ownership Monitor (MOM) Brasil, Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação e Repórteres sem Fronteiras, cinco grupos e seus proprietários controlam mais da metade dos veículos de comunicação do país – Grupo Globo, Bandeirantes, família Macedo, Grupo de escala regional RBS e Grupo Folha.
Essa concentração de mídia evidencia o racismo estrutural que se manifesta no campo da comunicação. Em 2021, pesquisa da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) sobre a presença de profissionais negros nos maiores jornais impressos do país demonstra que as pessoas brancas correspondem a 84% dos profissionais; pardas, 6,1%; pretas, 3,4%; amarelas, 1,8% e indígenas a 0,1%.
A pesquisadora Suzy Santos, no artigo E-Sucupira: o coronelismo eletrônico como herança do coronelismo nas comunicações brasileiras (2006), define o coronelismo eletrônico como o singular cenário recente brasileiro, a partir de 1980, no qual deputados e senadores se tornaram proprietários de empresas concessionárias de Comunicação e, simultaneamente, participam das comissões legislativas que outorgam os serviços e regulam os meios de comunicação no país.
Para ela, por esse viés entende-se porque estudiosos avaliam que a mídia hegemônica brasileira é racista devido a concentração do poder social, econômico e político em algumas famílias, cujo poder é oriundo do coronelismo colonial e escravocrata que estruturou o Brasil, consequentemente a mídia reproduzirá as ideias dos grupos, estrutura social e os privilégios que os constituíram.
O sociólogo Muniz Sodré, em seu livro Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil (1999), discorre sobre a origem da mídia brasileira, intelectualmente elitista e que atua na legitimação ou na escamoteação do racismo estrutural. O pesquisador esclarece que essa gênese fez da mídia um patrimônio nas mãos de poucas e poderosas famílias, cujo monopólio exerce forte influência no imaginário social coletivo do país, sobre praticamente todos os temas, e com o racismo não seria diferente, criando uma opinião pública racista e estigmatizada.
Historicamente, o racismo está presente na estrutura social, configurando o que Silvio Almeida – advogado, filósofo e o atual ministro dos Direitos Humanos do Brasil –, define no livro Racismo Estrutural (2018) como o caráter institucional do racismo. Ele acredita que a estrutura racista construiu a sociedade brasileira, portanto, a mídia. Isso se manifesta desde os profissionais que constituem os meios de Comunicação – principalmente nos cargos mais altos –, até aos conteúdos e a forma que os veiculam.
Mudanças na postura da mídia hegemônica
Estudos realizados por pesquisadores da área das Ciências Sociais Aplicadas, da Comunicação, especificamente, mostram o panorama da cobertura das temáticas raciais, principalmente do racismo, na imprensa hegemônica brasileira.
A pesquisadora da Universidade de São Paulo, a USP, Tainá Medeiros, trabalha com o tema do racismo estrutural no Jornalismo digital, e traçou um panorama de matérias publicadas em veículos de comunicação hegemônicos brasileiros, de 2010 a 2020, usando análise de conteúdo para estudar qualitativamente os textos.
Em seu trabalho de conclusão de curso (TCC) da Especialização em Cultura, Educação e Relações Étnico Raciais, a pesquisadora identificou 737 matérias de 178 veículos, porém analisou apenas 23 meios digitais, pois estes publicaram acima de 10 matérias com a temática étnico-racial. Foi constatado que houve um aumento significativo da cobertura desse tema, especialmente a partir de 2017.
Medeiros elenca alguns motivos que levaram a esse aumento, tais como a pressão articulada politicamente do Movimento Negro Unificado (MNU) principalmente, que a partir desse período, e por meio de eventos como a Marcha das Mulheres Negras, de 2015 e a Coalizão Negra Por Direitos, de 2019, se mobilizou meio da internet, fazendo a mídia agendar tais assuntos.
Comunicação antirracista e imprensa negra: a “saída”?
Professora da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), escritora e pesquisadora do tema racial há anos, Ceres Santos aponta que após a pandemia de Covid-19 e dos assassinatos de George Floyd nos Estados Unidos e de João Alberto Silveira Freitas, pela polícia, no Brasil, ambos em 2020, houve um aumento considerável nas coberturas da mídia hegemônica sobre temas raciais. Ela acredita que isso aconteceu junto à pressão e as denúncias que o Movimento Negro fez, ressoando a militância negra articulada. Contudo, ela destaca que não há o aprofundamento necessário: “Falta, por exemplo, relacionar os fatos com causas e consequências, como em casos em que a violência policial é um fator importante, e não se fala sobre.”, destaca.
Diante da necessidade de analisar como a mídia atua nessas questões, Ceres Santos e Márcia Guena, coordenadora do Grupo de Pesquisa Comunicação Antirracista e Pensamento Afordiaspórico, da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares na Comunicação (Intercom) e também professoras da Uneb, resolveram criar, em 2023, o Observatório racial da mídia brasileira, projeto de pesquisa desenvolvido por estudantes de graduação em Jornalismo em Multimeios da Uneb.
Márcia Guena em mesa de lançamento do site do Observatório Racial.
Foto: NAC/UNEB DCH III.
Márcia Guena defende que é preciso investir na mídia negra independente, porque esta parte do princípio da decolonialidade – consciência que surge a partir do questionamento e da desconstrução da lógica moderno-colonial –, da contra hegemonia, e tende a fazer coberturas mais contextualizadas, plurais e abrangentes.
Para estimular a Comunicação antirracista, Marcia Guena alerta para o sistema algorítmico da internet – onde mais se propaga informação atualmente – que segue os padrões racistas, uma vez que é controlado pelas grandes empresas de comunicação. Ela destaca que a imprensa negra, por assumir postura contrária, acaba sofrendo retaliações, o que fere a liberdade de imprensa – lei nº 2.083, de 12 de novembro de 1953 –, e consequentemente, a democracia. Para ela, apesar de ser uma luta desigual, é preciso fazê-la.
Mídia hegemônica X mídia negra: dados
Veículos independentes antirracistas como o Alma Preta, o Notícia Preta e o Mundo Negro são objeto de estudo do projeto de pesquisa Observatório Racial da Mídia Brasileira, coordenado por Santos e Guena. Dados do projeto apontam que é possível realizar coberturas mais contextualizadas, com diversidade de fontes e que não reproduzem estereótipos e ou preconceitos, sem ter muitos recursos para isso, sejam financeiros ou de capital humano.
No período analisado, de fevereiro a agosto de 2023, o subprojeto do Observatório que estuda a mídia independente negra e indígena constatou que a maioria das matérias dos veículos estudados segue pelo enquadramento temático, que consiste basicamente em uma forma de abordar os conteúdos jornalísticos de maneira que contextualiza, relaciona e avalia antecedentes, causas e consequências.
Já a mídia hegemônica nesse período, com mais recursos, mantém essa comunicação racista; apesar de haver um aumento na quantidade de material veiculado sobre essa temática, adota o uso da superficialidade e da falta de aprofundamento. A partir do conceito de enquadramento oficialista, desenvolvido pelo pesquisador Danilo Rothberg (2010), a mídia hegemônica usa somente de fontes e informações oficiais, principalmente de governos ou instituições privadas ligadas ao assunto em questão. Os veículos também não consideram a diversidade de fontes, no que se refere a recortes de gênero e raça.
Foto: arquivo pessoal de Vanessa Ramos (bolsista do Observatório).
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Imprensa negra nas universidades
Ceres Santos acredita que, para se ter uma comunicação antirracista, é preciso que haja uma formação específica dos futuros jornalistas, e que deve começar no início do curso. Segundo a pesquisadora, se estuda pouco a história da imprensa negra no Brasil como um todo. Ela considera inaceitável os estudantes saírem da universidade sem ter contato com a imprensa negra, sem saber sua importância e como se constitui o sistema da relação entre a Comunicação e o capital.
Na sua visão, são necessárias mudanças nos currículos das universidades, a fim de que desde o início se paute a imprensa negra, na ideia de que devemos conhecer a história real, não somente contada pelo viés colonizador, eurocêntrico.
Laíse Ribeiro, estudante de Jornalismo na Uneb e aluna de Márcia Guena e Ceres Santos, destaca que o contato com a Comunicação antirracista e o letramento racial foram possibilitados em duas disciplinas que as professoras lecionaram: Cultura brasileira e afro-índigena e Análise do discurso midiático. Segundo Ribeiro, as professoras a despertaram para a consciência racial, pautando a necessidade de não enxergar a mídia de forma “neutra”, “desinteressada”, mas para pensar que tudo o que é veiculado tem algum interesse, e que “a mídia hegemônica é racista”, comenta.
Juliana Pereira, também estudante de Jornalismo, diz que as atividades desenvolvidas em sala, principalmente durante a matéria Cultura brasileira e afro-indígena, como elaboração de artigos e análise de produtos midiáticos, a fizeram mudar o olhar sobre a mídia como um todo, buscando ver além do que está explícito.
Como frutos dessa formação inicial que lhe foi proporcionada, e despertadas para o letramento racial, bem como para os modos que o racismo se manifesta na Comunicação, as estudantes escreveram, em 2023, dois artigos pautando o tema racial na imprensa brasileira, os quais foram aprovados para apresentação em congressos da Intercom: um na etapa regional e outro na nacional. Os trabalhos se intitulam “CPF Cancelado: Sikêra Júnior, o Jornalismo fortalecedor do populismo penal” e “A mídia hegemônica e o racismo institucional: análise de matéria do jornal da Band sobre vacina para dependentes químicos”, este último em parceria com outras colegas.
Foto: arquivo pessoal de Laíse Ribeiro. |
Como um meio de buscar romper o racismo na Comunicação, Santos e Guena indicam a necessidade de mobilização articulada dos setores a que interessam a Comunicação, do privado à sociedade civil, passando pelo poder público. As pesquisadoras entendem ainda que parte importante dessa mobilização é o cumprimento do Estatuto da Igualdade Racial, de 2010, e o documento final da Primeira Conferência Nacional de Comunicação, de 2009.
A criação dos documentos referenciais foi um passo significativo, porém é preciso ação prática para se ter uma comunicação que, mesmo estruturada na lógica do sistema capitalista e colonial, não usa do poder que tem para continuar a “formar” uma sociedade racista.
Para conhecer o trabalho do Observatório Racial da Mídia, acesse: https://www.observatorioracialdamidia.com.br/
(o site se encontra em fase de elaboração, por questões de contrato de licitação da universidade, mas é possível acessar conteúdos).
Por Ana Beatriz Menezes, estudante do curso de Jornalismo em Multimeios e colaboradora do MultiCiência.