Pesquisas discutem imprensa negra e Comunicação antirracista no Brasil

Multiciência 04 maio 2024

Em 14 de setembro de 1833, o tipógrafo Francisco de Paula Brito fundava, no Rio de Janeiro, o jornal “O Homem de Côr”, conhecido também como “O Mulato”, que lutava pela abolição da escravidão no Brasil. Pioneiro na imprensa negra do país, O Homem de Côr foi a inspiração para criação dos periódicos Brasileiro Pardo e o Lafuente, lançados cerca de dois meses depois. 

 

Cento e noventa anos depois, a imprensa negra no país promove uma comunicação contra-hegemônica, em um país dominado por conglomerados de mídia, geralmente administrados por famílias com passado colonialista. Segundo pesquisa feita pelo Media Ownership Monitor (MOM) Brasil, Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação e Repórteres sem Fronteiras, cinco grupos e seus proprietários controlam mais da metade dos veículos de comunicação do país – Grupo Globo, Bandeirantes, família Macedo, Grupo de escala regional RBS e Grupo Folha. 


Essa concentração de mídia evidencia o racismo estrutural que se manifesta no campo da comunicação. Em 2021, pesquisa da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) sobre a presença de profissionais negros nos maiores jornais impressos do país demonstra que as pessoas brancas correspondem a 84% dos profissionais; pardas, 6,1%; pretas, 3,4%; amarelas, 1,8% e indígenas a 0,1%. 


A pesquisadora Suzy Santos, no artigo E-Sucupira: o coronelismo eletrônico como herança do coronelismo nas comunicações brasileiras (2006), define o coronelismo eletrônico como o singular cenário recente brasileiro, a partir de 1980,  no  qual deputados  e  senadores  se  tornaram  proprietários  de empresas concessionárias   de Comunicação   e,   simultaneamente,   participam   das comissões  legislativas  que  outorgam  os  serviços  e  regulam  os  meios  de  comunicação  no país. 


Para ela, por esse viés entende-se porque estudiosos avaliam que a mídia hegemônica brasileira é racista devido a concentração do poder social, econômico e político em algumas famílias, cujo poder é oriundo do coronelismo colonial e escravocrata que estruturou o Brasil, consequentemente a mídia reproduzirá as ideias dos grupos, estrutura social e os privilégios que os constituíram.


O sociólogo Muniz Sodré, em seu livro Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil (1999), discorre sobre a origem da mídia brasileira, intelectualmente elitista e que atua na legitimação ou na escamoteação do racismo estrutural. O pesquisador esclarece que essa gênese fez da mídia um patrimônio nas mãos de poucas e poderosas famílias, cujo monopólio exerce forte influência no imaginário social coletivo do país, sobre praticamente todos os temas, e com o racismo não seria diferente, criando uma opinião pública racista e estigmatizada. 


Historicamente, o racismo está presente na estrutura social, configurando o que Silvio Almeida – advogado, filósofo e o atual ministro dos Direitos Humanos do Brasil –, define no livro Racismo Estrutural (2018) como o caráter institucional do racismo. Ele acredita que a estrutura racista construiu a sociedade brasileira, portanto, a mídia. Isso se manifesta desde os profissionais que constituem os meios de Comunicação – principalmente nos cargos mais altos –, até aos conteúdos e a forma que os veiculam. 


Mudanças na postura da mídia hegemônica


Estudos realizados por pesquisadores da área das Ciências Sociais Aplicadas, da Comunicação, especificamente, mostram o panorama da cobertura das temáticas raciais, principalmente do racismo, na imprensa hegemônica brasileira. 


A pesquisadora da Universidade de São Paulo, a USP, Tainá Medeiros, trabalha com o tema do racismo estrutural no Jornalismo digital, e traçou um panorama de matérias publicadas em veículos de comunicação hegemônicos brasileiros, de 2010 a 2020, usando análise de conteúdo para estudar qualitativamente os textos.


Em seu trabalho de conclusão de curso (TCC) da Especialização em Cultura, Educação e Relações Étnico Raciais, a pesquisadora identificou 737 matérias de 178 veículos, porém analisou apenas 23 meios digitais, pois estes publicaram acima de 10 matérias com a temática étnico-racial. Foi constatado que houve um aumento significativo da cobertura desse tema, especialmente a partir de 2017. 


Medeiros elenca alguns motivos que levaram a esse aumento, tais como a pressão articulada politicamente do Movimento Negro Unificado (MNU) principalmente, que a partir desse período, e por meio de eventos como a Marcha das Mulheres Negras, de 2015 e a Coalizão Negra Por Direitos, de 2019, se mobilizou meio da internet, fazendo a mídia agendar tais assuntos.  



Comunicação antirracista e imprensa negra: a “saída”?


Professora da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), escritora e pesquisadora do tema racial há anos, Ceres Santos aponta que após a pandemia de Covid-19 e dos assassinatos de George Floyd nos Estados Unidos e de João Alberto Silveira Freitas, pela polícia, no Brasil, ambos em 2020, houve um aumento considerável nas coberturas da mídia hegemônica sobre temas raciais. Ela acredita que isso aconteceu junto à pressão e as denúncias que o Movimento Negro fez, ressoando a militância negra articulada. Contudo, ela destaca que não há o aprofundamento necessário: “Falta, por exemplo, relacionar os fatos com causas e consequências, como em casos em que a violência policial é um fator importante, e não se fala sobre.”, destaca. 


Diante da necessidade de analisar como a mídia atua nessas questões, Ceres Santos e Márcia Guena, coordenadora do Grupo de Pesquisa Comunicação Antirracista e Pensamento Afordiaspórico, da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares na Comunicação (Intercom) e também professoras da Uneb, resolveram criar, em 2023, o Observatório racial da mídia brasileira, projeto de pesquisa desenvolvido por estudantes de graduação em Jornalismo em Multimeios da Uneb. 


Flávio Freire (bolsista), Ceres Santos e Márcia Guena (orientadoras), em mesa de lançamento do site do Observatório.

Foto: NAC/UNEB DCH III.


Após cerca de 10 meses de pesquisa, dados preliminares indicam que houve mudanças consideráveis na quantidade de matérias sobre a temática racial, em comparação a estudos já realizados por elas no passado, e em comparação também com os estudos de Tainá Medeiros, da USP. 


Em uma década (2010-2020) foram encontradas por Medeiros 737 matérias, como afirmado acima, enquanto que no Observatório, em aproximadamente sete meses, encontrou-se o total de 1.692: uma diferença de 955 matérias. É importante destacar que as palavras-chave usadas para as buscas são diferentes, mas todas focam na temática racial, principalmente do racismo. Em menos de um ano (2023) foi publicado mais do que o dobro de matérias com esse tema do que em uma década de coleta. No entanto, a superficialidade é a característica principal dessas coberturas, e por isso, as pesquisadoras da Uneb avaliam que a mídia independente negra é uma maneira de confrontar esse sistema e fazer uma comunicação antirracista.


Para Ceres Santos, a mídia independente negra é a “saída” para romper o racismo institucional reproduzido pela mídia hegemônica. Segundo a pesquisadora, existe um “mundo negro” que a população desconhece porque não sai na grande mídia, mas que a independente negra pauta. Contudo, ela alerta para a necessidade de enxergar que a mídia independente negra também tem interesses, e de não pensá-la como neutra ou imparcial. 


Ela acredita que a Comunicação antirracista passa principalmente pela análise da mídia hegemônica, apontando causas e consequências desse desinteresse pelas temáticas raciais, e pautando a necessidade de ter cuidado para não naturalizar o racismo. Deve se questionar porque os assuntos relacionados às pessoas negras são abordados de forma diferente, sobretudo.



Márcia Guena em mesa de lançamento do site do Observatório Racial.

Foto: NAC/UNEB DCH III.


Márcia Guena defende que é preciso investir na mídia negra independente, porque esta parte do princípio da decolonialidade – consciência que surge a partir do questionamento e da desconstrução da lógica moderno-colonial –, da contra hegemonia, e tende a fazer coberturas mais contextualizadas, plurais e abrangentes. 


Para estimular a Comunicação antirracista, Marcia Guena alerta para o sistema algorítmico da internet – onde mais se propaga informação atualmente – que segue os padrões racistas, uma vez que é controlado pelas grandes empresas de comunicação. Ela destaca que a imprensa negra, por assumir postura contrária, acaba sofrendo retaliações, o que fere a liberdade de imprensa – lei nº 2.083, de 12 de novembro de 1953 –, e consequentemente, a democracia. Para ela, apesar de ser uma luta desigual, é preciso fazê-la.



Mídia hegemônica X mídia negra: dados

 

Veículos independentes antirracistas como o Alma Preta, o Notícia Preta e o Mundo Negro são objeto de estudo do projeto de pesquisa Observatório Racial da Mídia Brasileira, coordenado por Santos e Guena. Dados do projeto apontam que é possível realizar coberturas mais contextualizadas, com diversidade de fontes e que não reproduzem estereótipos e ou preconceitos, sem ter muitos recursos para isso, sejam financeiros ou de capital humano. 


No período analisado, de fevereiro a agosto de 2023, o subprojeto do Observatório que estuda a mídia independente negra e indígena constatou que a maioria das matérias dos veículos estudados segue pelo enquadramento temático, que consiste basicamente em uma forma de abordar os conteúdos jornalísticos de maneira que contextualiza, relaciona e avalia antecedentes, causas e consequências. 


Já a mídia hegemônica nesse período, com mais recursos, mantém essa comunicação racista; apesar de haver um aumento na quantidade de material veiculado sobre essa temática, adota o uso da superficialidade e da falta de aprofundamento. A partir do conceito de enquadramento oficialista, desenvolvido pelo pesquisador Danilo Rothberg (2010), a mídia hegemônica usa somente de fontes e informações oficiais, principalmente de governos ou instituições privadas ligadas ao assunto em questão. Os veículos também não consideram a diversidade de fontes, no que se refere a recortes de gênero e raça.


Foto: arquivo pessoal de Vanessa Ramos (bolsista do Observatório).


Imprensa negra nas universidades


Ceres Santos acredita que, para se ter uma comunicação antirracista, é preciso que haja uma formação específica dos futuros jornalistas, e que deve começar no início do curso. Segundo a pesquisadora, se estuda pouco a história da imprensa negra no Brasil como um todo. Ela considera inaceitável os estudantes saírem da universidade sem ter contato com a imprensa negra, sem saber sua importância e como se constitui o sistema da relação entre a Comunicação e o capital.


Na sua visão, são necessárias mudanças nos currículos das universidades, a fim de que desde o início se paute a imprensa negra, na ideia de que devemos conhecer a história real, não somente contada pelo viés colonizador, eurocêntrico. 


Laíse Ribeiro, estudante de Jornalismo na Uneb e aluna de Márcia Guena e Ceres Santos, destaca que o contato com a Comunicação antirracista e o letramento racial foram possibilitados em duas disciplinas que as professoras lecionaram: Cultura brasileira e afro-índigena e Análise do discurso midiático. Segundo Ribeiro, as professoras a despertaram para a consciência racial, pautando a necessidade de não enxergar a mídia de forma “neutra”, “desinteressada”, mas para pensar que tudo o que é veiculado tem algum interesse, e que “a mídia hegemônica é racista”, comenta. 


Juliana Pereira, também estudante de Jornalismo, diz que as atividades desenvolvidas em sala, principalmente durante a matéria Cultura brasileira e afro-indígena, como elaboração de artigos e análise de produtos midiáticos, a fizeram mudar o olhar sobre a mídia como um todo, buscando ver além do que está explícito. 


Como frutos dessa formação inicial que lhe foi proporcionada, e despertadas para o letramento racial, bem como para os modos que o racismo se manifesta na Comunicação, as estudantes escreveram, em 2023, dois artigos pautando o tema racial na imprensa brasileira, os quais foram aprovados para apresentação em congressos da Intercom: um na etapa regional e outro na nacional. Os trabalhos se intitulam “CPF Cancelado: Sikêra Júnior, o Jornalismo fortalecedor do populismo penal” e “A mídia hegemônica e o racismo institucional: análise de matéria do jornal da Band sobre vacina para dependentes químicos”, este último em parceria com outras colegas.


Foto: arquivo pessoal de Laíse Ribeiro.


Como um meio de buscar romper o racismo na Comunicação, Santos e Guena indicam a necessidade de mobilização articulada dos setores a que interessam a Comunicação, do privado à sociedade civil, passando pelo poder público. As pesquisadoras entendem ainda que parte importante dessa mobilização é o cumprimento do Estatuto da Igualdade Racial, de 2010, e o documento final da Primeira Conferência Nacional de Comunicação, de 2009. 


A criação dos documentos referenciais foi um passo significativo, porém é preciso ação prática para se ter uma comunicação que, mesmo estruturada na lógica do sistema capitalista e colonial, não usa do poder que tem para continuar a “formar” uma sociedade racista. 



Para conhecer o trabalho do Observatório Racial da Mídia, acesse: https://www.observatorioracialdamidia.com.br/ 

(o site se encontra em fase de elaboração, por questões de contrato de licitação da universidade, mas é possível acessar conteúdos). 


Por Ana Beatriz Menezes, estudante do curso de Jornalismo em Multimeios e colaboradora do MultiCiência.