Livro Minha’rimã da poeta uauaense Pók Ribeiro tem pré-lançamento divulgado

Multiciência 10 julho 2024

Pók Ribeiro é poeta, escritora e pesquisadora. Autora dos livros de poesia Pedilua (2017), Endométrio (2019) e Os dedos de Maria (2022), tem sua atuação marcada pela colaboração com outras mulheres poetisas e/ou escritoras do Semiárido baiano. Um dos coletivos que integra é o LiterÁridas e é co-autora do livro Úmidas (2022).



Foto: Carla Paiva


Seu mais recente trabalho, “Minha’rimã”, é um conjunto de vozes, desejos, labutas e gozos de várias mulheres que se atravessam em diferentes tempos e espaços, construindo suas próprias travessias nos mundos plurais em que vivem. O livro é apresentado como uma narrativa sinestésica, que busca a pluralidade de vozes e poéticas. A obra que está disponível como pré-lançamento desde o dia 27 de junho, é caracterizada como uma ciranda de expressões, uma conversa íntima com o leitor, uma reza e um grito ancestral que não cessa.



Foto: Acervo digital da editora Caravana

Acompanhe a entrevista que Pók Ribeiro nos concedeu, na qual exploramos a poética de seu trabalho, a estrutura do patriarcado e a essência do livro “Minha’rimã”.


Como surgiu a ideia para a criação de "Minha’rimã" e o que te inspirou a dar voz a tantas mulheres através dos contos?

 

Os textos que compõem a obra "Minha’rimã vêm sendo construídos há algum tempo, talvez desde lá de 2016 até agora, em um processo de escrita ainda sem intenção de publicação de livro. Eram textos que eu ia escrevendo, mas com intenção de resgatar essa memorança ancestral das mulheres, da comunidade onde eu nasci e vivi a minha infância, que é o Logradouro do Juvenal, no interior de Uauá (BA), bem dessa intenção, desse desejo de resgatar essa ancestralidade, esses saberes das mulheres. Trazer muito da oralidade, dos causos, das histórias que eram contadas. Só com a minha participação no Clipe, em 2023, um curso de preparação de escritores, promovido pela Casa das Rosas de São Paulo, é que eu fui entender a dimensão dos textos que eu já havia produzido e a partir dali eu passei a cogitar a possibilidade de transformá-los num livro. A partir das trocas, das escutas, das opiniões dos professores. O curso teve duração de um ano com professores e escritores renomados, entendi que aquela escrita que eu estava produzindo tinha sim um potencial artístico-literário grande, surgindo a ideia da criação do livro. Todas essas mulheres que atravessaram a minha vida, desde o meu nascimento, desde a parteira que me pegou na estrada, as minhas avós, a minha mãe, as minhas tias, as primas, as mulheres que frequentavam a casa dos meus avós, todas elas têm uma participação nos contos. O propósito é justamente trazer essa voz de mulher, que durante muito tempo é apagada, silenciada, seja pelo canône literário que é patriarcal, seja pela própria construção da sociedade, essa construção machista em que a voz masculina se sobressai, tem mais destaque, tem mais poder.

 

A narrativa de "Minha’rimã" é descrita como sinestésica e cheia de poéticas plurais. Como você construiu essa multiplicidade de vozes e sentidos na sua escrita?

 

A marca da sinestesia e das poéticas plurais, que é bastante presente na obra, vem muito dessa vivência mesmo. Eu trago muito do meu olhar de criança em meio à comunidade, em meio aos bichos e plantas da caatinga. As memórias que eu carrego dos cheiros do café e broa, feita pelas avós e tias-avós. Então isso está muito presente na obra, por isso que eu falo dessa sinestesia e dessas poéticas plurais. Não é uma narrativa apenas com propósitos descritivos, não. É poético, de tocar e sensibilizar. Eu acho que tem muito desse olhar da criança que eu fui vivendo aquelas experiências que hoje são experiências literárias também. A construção dessa multiplicidade de vozes e sentidos na escrita, vem daí também, da variedade de experiências e de trocas. Dessa vivência que é conjunta, ela não é individualizada, é uma vivência coletiva de que as mulheres se escutam, apoiam e conjuram alternativas de sobrevivência ao sistema e de uma vivência extremamente harmônica com a própria natureza, com a caatinga, com os elementos da natureza em si, com a compreensão dos ventos, das águas, do fogo, da terra, dos animais. Então é extremamente holístico. Então isso também está na pluralidade das vozes, na linguagem que é utilizada, nas palavras que eu resgato e nesses sentidos que se pluralizam.

 

Em "Minha’rimã", você menciona romper com os silêncios herdados. Pode nos falar um pouco sobre esses silêncios e como eles influenciam sua obra?

 

Pensar no silêncio como um produto, como um feito herdado, é entender essa construção histórica e social do patriarcado, que desde muito tempo coloca a mulher nesse lugar de invisibilização, de dominação e de silenciamento mesmo. Temos o conhecimento que, ao longo da história, as decisões eram sempre tomadas pelo patriarcado, isso no contexto familiar. As mulheres estavam relegadas ao silêncio, à obediência, ao recato, à imposição de um comportamento que domasse os seus desejos, que domasse as suas habilidades, as suas criações inclusive. Então, quando eu falo em silêncios herdados, para me referir à obra, é justamente para trazer essas mulheres, como donas de si, donas da sua palavra, donas dos seus desejos, dos seus corpos, dos seus gozos, donas também das decisões políticas e sociais sobre si mesmas, sobre seus destinos, que caminhos tomar. É nesse sentido, que falo sobre romper com esse silenciamento. Por exemplo, na época das minhas avós, na juventude das minhas avós, elas tiveram ensinamentos de que deveriam estar destinadas ao lar, ao casamento, à construção da família. Eu me pergunto, será que as minhas avós também não tinham vocação para a literatura, para as outras artes?! Não queriam ter tido outras profissões?! Não queriam ter tido outra vida?! A minha avó paterna, eu soube já depois de grande, que ela escrevia versos nas paredes da casa dos pais dela. Quantas escritoras, quantas artistas, quantas outras profissões não foram anuladas e silenciadas por conta desse patriarcado. Então, é pensar que essas vozes foram abafadas, foram anuladas, e trazê-las no formato de personagens ou de narradoras autônomas, cheias de si, é meio que fazer uma justiça a essas mulheres, a essas vozes.

 

 

O livro contém uma mistura de vozes ancestrais e contemporâneas. Como foi o processo de integrar essas diferentes temporalidades na narrativa?

 

Confesso que eu não fui pensando tecnicamente ou teoricamente nessa mistura de vozes ancestrais e contemporâneas, não foi algo programado a partir de estilos ou de estudos teóricos. Foi algo muito mais subjetivo, foi algo muito mais sensorial, intuitivo, digamos assim. Eu deixei que esse fio das memórias, que a lembrança dessas mulheres, que o resgate dessas histórias, dos causos, eles fossem conduzindo, sabe? E meio que em determinado momento, as narradoras e as personagens tomavam a rédea da escrita. E aí eu era só um instrumento ali para escrever, porque as personagens, as narradoras, que também são várias, elas ganharam força nesse processo de escrita. E elas mesmo conduziam, sabe? Parece estranho falar nisso, mas, quando você está envolvido num processo de escrita, quando você se deixa tocar, de fato, pela emoção, pela força desse processo, é a escrita que lhe conduz e não o contrário. Então a escrita foi conduzida por elas, pelas doidas, pelas avós, pelas meninas que falam, que sentem. Então, naturalmente, há essa mistura, porque é um tanto dessa memória, minha é lá, da menina, da criança que eu fui, com memórias dessa eu que sou agora, com resgate dessas vozes. Elas se misturam, e se misturam intencionalmente, e fazem uma balbúrdia literária marcada pela emoção, pela espiritualidade, pela força mesmo.

 

Você faz parte de coletivos literários e trabalha com outras mulheres na produção de poesia e artes no Semiárido baiano. Como essas experiências colaborativas influenciam a sua escrita?

 

Sim, já há algum tempo eu tenho atuado mais coletivamente do que individualmente. Essa atuação coletiva que me interessa mais. Eu acho que quando a gente entende essa potência da junção das mulheres, mostrando que essa rivalidade que o patriarcado criou para nós é apenas uma estratégia de dominação, quando a gente entende isso, a gente multiplica forças. Quando a gente soma vozes, potências criativas e artísticas e literárias, a gente entende que o poder é maior. E talvez isso mesmo é que intimide o sistema patriarcal, por isso que eles querem nos ver separadas, apartadas. É uma escolha mesmo atuar coletivamente, no Coletiva Vozes das Mulheres Além das Margens, que tem atuação no Vale do São Francisco, por conta das e no LiterÁridas. É importante que a gente ocupe os espaços não apenas para preenchê-los, mas para transformá-los. São essas experiências coletivas que me marcam também. Escutar e ler essas mulheres, vai agregando, vai somando muito na gente, porque a coisa é importante. A gente tem discutido muito já há algum tempo sobre a escrita da mulher, sobre a literatura produzida por mulheres, a gente reivindica esse lugar. Fala, mas é importante pensar, nós lemos mulheres, nós divulgamos trabalhos de mulheres, nós compramos obras produzidas por mulheres, nós assistimos a espetáculos produzidos por mulheres, então é importante que a gente também tenha essa ação, de participar, engajar, colaborar, trocar, e não apenas discursiva. O discurso é importante, é óbvio, mas a ação coletiva, a ação de fortalecimento é fundamental. Então essa troca de experiências, com outras mulheres impacta positivamente, o tempo todo na minha escrita também.

 

 

A sua trajetória inclui a publicação de diversos livros de poesia. Como você enxerga a relação entre sua poesia e a prosa presente em "Minha’rimã"?

 

Essa é a minha primeira aventura na prosa. Confesso que inicialmente eu fiquei bastante insegura. Eu me sentia mais confortável, mais segura no meu chão de poesia. E, como eu já falei anteriormente, essa minha experiência no Clipe, de um ano, que é esse curso de preparação de escritores, me fez entender que necessariamente não precisam estar distantes. A poesia e a prosa não se opõem, do contrário, elas se completam, elas se interconectam. A prosa é uma escrita completamente poética também. Eu não fujo dessa minha veia, desse meu pé no chão da poesia. No livro “Minha’rimã”, há uma carga poética muito forte, ou de poéticas plurais, como já dito anteriormente. A minha poesia atravessa, seja na construção das frases, dos parágrafos, na forma como eu trago as memórias, como eu apresento as referências sensoriais dos cheiros e sabores. Tudo isso misturado ao processo narrativo, isso torna essa prosa uma prosa poética. Os textos não se misturam, não há um gênero único, não há um gênero puro. Em literatura tudo se mistura. A autobiografia, a narrativa, a ficção, a memória, a poesia, o contexto histórico, o ideal político, tudo se mistura em literatura. E é essa literatura que eu busco. Essa literatura da disseminação e contaminação, em que os gêneros se infiltram, se germinam um no outro. E “Minha-rimã” traz isso. É uma prosa permeada pela poesia, umedecida pela literatura. Pela poesia, umedecida pelos relatos memoriais, reflexões políticas, históricas e sensibilidade.

 

O que os 24 contos que formam o livro têm em comum?

 

Embora sejam 24 contos separados, eles têm meio que um fio mesmo que costura. Acho que é essa a ideia mesmo, da costura, do alinhavo, dessa colcha de retalhos. E se a gente for pensar qual seria essa linha, qual seria esse fio que costura, seria essa presença ativa de mulheres. Todos os contos são narrados e protagonizados por mulheres. Não que não haja presença de homens, há a presença de homens, sim. Na obra quem traz a voz, o desejo, a fala, o sentido, são as mulheres. São elas que falam sobre si a partir de suas próprias vivências, de suas experiências, dos seus olhares. Então esse fio é esse fio da voz, do corpo, da presença, da ancestralidade da mulher.

 

Existe um momento o qual é possível a pesquisadora se encontrar com a poeta? Elas se entrelaçam? O ramo da pluralidade e força da poesia pode caminhar com a pesquisa científica?

 

Na minha pessoa e na minha escrita, pesquisa, poética, tudo se entrelaça, tudo se dissemina, tudo se contamina, tudo se mistura. Embora a academia queira colocar essa coisa da subjetividade separada, da teoria, eu sigo um pensamento de que tudo se mistura. A Audre Lorde já havia dito, inclusive, em uma de suas obras, que teoria e poética são a mesma coisa porque é o que a gente vive, é a nossa experiência, é transformar a nossa experiência na poética, na literatura. Então, elas não se opõem, elas se completam, elas se misturam, que é o que também a Conceição Evaristo nos diz nas suas escrevivências, escritas a partir das vivências, das experiências das mulheres negras, dos seus silenciamentos. Então, eu acho que eu, nessa minha escrita caatingueira, que é um termo que inclusive eu adoto e defendo enquanto pesquisadora, trago essa mistura. Não tem como separar, sabe? Eu pesquiso a literatura produzida por mulheres nos Semiáridos baianos. Então, essa minha literatura também está aí dentro. Eu sou poeta do Semiárido baiano. Na verdade, tudo se mistura, não como mistura bagunçada, mas mistura que aglutina, que soma, que pluraliza, que diversifica e que amplia vozes. É uma forma de romper, de quebrar com a homogeneidade, com essa dominação de uma única voz, de um único corpo, de um único lugar. São vários lugares que falam, são vários corpos que falam, são várias vozes que se misturam e que se singularizam também. Então é isso, é pluralidade, é ancestralidade, é diversidade de vozes, de sentidos, de saberes e de escritas literárias, que também perpassam a pesquisa.


Por Meiwa Magalhães e Ana Beatriz Menezes, estudantes de Jornalismo em Multimeios e monitoras do MultiCiência.